Hoje, como me opprimisse a sensação do corpo
aquella angustia antiga que por vezes extravasa, não
comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou
casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação
da minha existencia. E, como, ao sahir eu, o
creado verificasse que a garrafa de vinho ficára em
meio, voltou-se para mim e disse: "Até logo, sr.
Soares, e desejo as melhoras."
Ao toque de clarim d'esta phrase simples
a minha alma alliviou-se como se num ceu
de nuvens o vento de repente as afastasse.
E então reconheci o que nunca claramente
reconhecera, que nestes creados de
café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços
de frete das esquinas, eu tenho uma sympathia
espontanea, natural que não posso orgulhar-me
de receber dos que privam comigo em maior
intimidade, impropriamente dicta...
A fraternidade tem subtilezas.
Uns governam o mundo, outros são o mundo.
Entre um millionario americano, um Cesar ou Napoleão,
ou Lenine, e o chefe socialista da aldeia — não ha
differença de qualidade, mas apenas de quantidade. Abaixo
d'esses estamos nós, os amorphos, o dramaturgo
atabalhoado William Shakespeare, o mestre escola John
Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de
fretes que me fez hontem o recado, eu, o barbeiro
que me conta anecdotas, o creado que acaba
de me fazer a fraternidade de me
desejar aquellas melhoras, ∧por ∧eu não ter bebido
senão metade do vinho.