Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(115)

Hoje, como me opprimisse a sensação


Hoje, como me opprimisse a sensação do corpo aquella angustia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existencia. E, como ao sahir eu [?], o creado verificasse que a garrafa de vinho ficára em meio voltou-se para mim e disse: "até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras ".

Ao toque de clarim d'esta phrase simples a minha alma alliviou-se como se num ceu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes creados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma sympathia espontanea, natural que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em mais intimidade, impropriamente dicta...

A fraternidade tem subtilezas.

Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um millionario americano, com bens na Inglaterra ou Suissa e o chefe Socialista da aldeia — não ha differença de qualidade, mas apenas de quantidade. Abaixo [...] destes, nós, os amorphos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez hontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o creado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquellas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.