Leitura Crítica 2 - Usa (BNP/E3, 7-23-24-25-26-27r)

Sen.to Apocalyptico


Sen.to Apocalyptico    L. do D.

Pensando que cada passo na
minha vida era um contacto
com o horror do Novo, e que
cada nova pessoa que eu co-
nhecia era um novo fragmento
vivo do desconhecido que eu
punha em cima da minha
meza para quotidiana medi-
tação apavorada — decidi abs-
ter-me de tudo, não avançar
para nada, reduzir a acção
ao minimo, furtar-me o
mais possivel a que eu fôsse
encontrado quér pelos homens
quér pelos acontecimentos,
requintar sobre a abstinencia
e pôr a abdicação a
byzantino. Tanto (o) viver me
apavora e me tortura.

Decidir-me, finalizar qual-
quér cousa, sahir do
duvidoso e do obscuro, são
cousas se me figuram catastrophes,
cataclysmos universaes.


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Sinto a vida em apocalypse e
cataclysmo. Dia a dia em
mim augmenta a incompeten-
cia para sequer esboçar gestos,
para me conceber sequer em situa-
ções claras de realidade.

A presença dos outros — tão
inesperada de alma a todo o
momento — dia a dia me é
mais dolorosa e angustiante.
Fallar com os outros percorre-
me de arrepios. Se mostram
interesse por mim, fujo. Se me
olham, estremeço. Se          

Estou n'uma defeza defensiva perpetua.
Dôo-me a vida e a outros.
Não posso fitar a realidade
frente a frente. O proprio sol
já me desanima e me
desola. Só á noite, e á noite
a sós commigo, alheio, esquecido,
perdido — sem liga com a reali-
dade nem parte com a
utilidade — me encontro e me
dou conforto.


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Tenho frio da vida. Tudo é caves
humidas e catacumbas sem luz
na minha existencia. Sou a
grande derrota do ultimo exer-
cito que sustinha o ultimo
imperio. Saibo-me a fim de
uma civilização antiga e dominadora.
Estou só e abandonado, eu que como que costu-
mei mandar outros. Estou sem amigo,
sem guia, eu a quem sempre outros guia-
ram.

Qualquér cousa em mim pede
eternamente compaixão e chora sobre
si como sobre um deus morto,
sem altares no culto, quando
a vinda branca dos barbaros moceou
nas fronteiras e a vida veio
pedir contas ao imperio
do que elle fizéra da alegria.


Tenho sempre receio de que
fallem em mim. Falhei em tudo.
Nada ousei sequér pensar em ser;
pensar que o desejaria, nem sequer o
sonhei, porque no proprio sonho me conheci
incompetente para a vida, até no


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meu estado visionario de sonhador
apenas.

Nem um sentimento levanta
a minha cabeça do travesseiro onde
a afundo por não poder com o
corpo, nem com a idéa de que vivo,
ou sequer com a idéa absoluta
da vida.

Não fallo a lingua das
realidades, e entre as cousas
da vida cambaleio como um
doente de longo leito que se
ergue pela primeira vez. Só no
leito me sinto na vida normal.
Quando a febre chega agrada-me como
uma natural           do meu
estado recumbente. Como
uma chama ao vento tremo
e estonteio-me. Só no ar morto
dos quartos fechados respiro a
normalidade da minha vida.

Nem uma saudade já me
resta das brisas á beira dos mares.
Conformei-me com ter-me
a minha alma por convento, e eu não


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ser mais para mim do que outomno
sobre descampados seccos, sem mais
vida viva do que um reflexo como
de uma luz que finda na escuridão
endocelada dos tanques, sem mais
esforço e côr do que o esplendor violeta-
exilio do fim do poente sobre os
montes.

No fundo nenhum outro prazer
do que a analyse da dôr, nem outra
volupia que a do collear liquido e
doente das sensações quando se esmiuçam
e se decompõem — leves passos na
sombra incerta, suaves ao ouvido, e
nós nem nos voltamos para saber de
quem são; vagos cantos longinquos,
cujas palavras não buscamos colher,
mas onde nos embala mais o
indeciso do que dirão e a incerteza
do logar d'onde veem; tenues segre-
dos de aguas pallidas, enchendo de
longes leves os espaços           e nocturnos;
guizos de carros longinquos, regressando
d'onde? e que alegrias lá dentro, que
não se ouvem aqui, somnolentos no
torpor morno na tarde onde o verão
se esquece a outomno... Morreram


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as flores do jardim, e, murchas, são
outras flores — mais antigas, mais
nobres, mais coëvas a amarello morto
com o mysterio e o silencio e o aban-
dono. As bolhas de agua que afloram
nos tanques teem a sua razão para
os sonhos. Coaxar distante das rãs?
Ó campo morto em mim! Ó
socego rustico passado em sonhos!
Ó minha vida futil como um
maltez camponez que não trabalha e dorme
á beira dos caminhos com
o aroma dos prados a entrar-lhe
na alma como um nevoeiro,
n'um somno translucido e fresco,
fundo e cheio de
eternidade com tudo que nada liga a
nada, nocturno, ignorado, nomada
e cansado sob a compaixão
fria das estrellas.

Sigo o curso dos meus sonhos,
fazendo das imagens degraus para
outras imagens; desdobrando, como um
leque, as metaphoras casuaes em
grandes quadros de visão interna;


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desato de mim a vida, e ponho-a
de banda como a um traje que
aperta. Occulto-me entre arvores
longe das estradas. Perco-me. E
lógro, por momentos que correm
levemente, esquecer o gosto á vida,
deixar ir-se a ideia de luz e de
bulicio e acabar conscientemente,
absurdamente pelas sensações fóra,
como um imperio de renuncias
angustiadas, e uma entrada entre
pendões e tambores de victoria
n'uma grande cidade final onde não
choraria nada, nem desejaria nada
e nem a mim proprio pediria
o sêr.
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Doem-me as superficies das
aguas doentes dos tanques que criei em
sonhos. É minha a pallidez da
lua que visiono sobre paysagens de
florestas. É o meu cansaço o
outomno dos ceus estagnados que
recórdo e não vi nunca.
Pesa-me toda a minha vida morta,
todos os meus sonhos faltos, tudo
meu que não foi meu,
no azul dos meus ceus interiores,
no tinir á vista do correr dos
meus rios na alma, no vasto
e inquieto socego dos trigos nas
planicies que vejo e que não
vejo.
          ─────

Uma chavena de café, um
tabaco que se fuma e cujo
aroma nos atravessa, os olhos quasi
cerrados n'um quarto em penumbra —
não quero mais da vida do que
os meus sonhos e isto... Se é pouco?
Não sei. Sei eu acaso o que é pouco
ou o que é muito?

Tarde de verão lá fora e como eu gostaria

de ser outro... Abro a janella. Tudo lá fóra é suave, mas punge-me
como uma dôr incerta, como uma sensação vaga de descontentamento.


              9.

E uma ultima cousa punge-me,
rasga-me, esfrangalha-me toda a alma.
É que eu, a esta hora, a esta janella,
pensando estas cousas tristes e suaves,
devia ser uma figura esthetica, bella,
como uma figura n'um quadro — e
eu não o sou, nem isto sou...

A hora que passe e esqueça... A
noite que venha, que cresça, que cahia
sobre tudo e nunca se erga. Que
esta alma seja o meu tumulo para
sempre, e que      
    se absolute em Treva e eu
nunca mais possa viver nem
sentir ou desejar. ________


o estase violeta-exílio do
fim do poente com os montes
            L. do D.