Leitura Crítica 2 - Usa (BPARPD, ACR-CORR-4478-1-2)

[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 2 de Setembro de 1914]


                Lisboa, 2 de Setembro de 1914

Meu querido Amigo:

Recebi o seu postal, e foi-me muito
grato saber que a sua viagem foi boa. Aguar-
do a sua carta promettida. Escreva tão
extensamente quanto lhe fôr possivel. Por
mim, para que não tarde a minha carta,
começo-a hoje.

Mau grado a alguma depressão, constante
desde que lá fóra é guerra, tenho passado
com razoavel calma pela illusão successiva
dos dias. Nada tenho escripto que valha
a pena mandar-lhe. Ricardo Reis e
Alvaro futurista — silenciosos. Caeiro per-
petrador de algumas linhas, que encon-
trarão talvez asylo n'um livro futuro.
Mas essas linhas são esboços de poesias,
não poesias propriamente fallando.
O que principalmente tenho feito é
sociologia e desassocego. V. percebe que a
ultima palavra diz respeito ao "livro"
do mesmo; de facto tenho elaborado varias
paginas d'aquella produção doentia.
A obra vae pois complexamente e tortuo-
samente avançando.

Quanto á sociologia, além de ter acres-
centado alguns raciocinios e analyses


2
á minha "Theoria da Republica Aristo-
cratica", tenho deliberado theorias va-
rias sobre a guerra presente e sobre as
forças sociaes, nacionaes e civilizacionaes
em acção. Creio ir-me approximan-
do de uma interpretação do conflicto
com visos de verdadeira, ou, pelo menos
(sejamos sempre um pouco scepticos),
de plausivel.

O facto é que n'este momento
atravesso um período de crise na
minha vida. Preoccupa-me quoti-
dianamente a necessidade de dar
ao conjuncto da minha orientação,
tanto intellectual como "existente
na vida", uma linha methodica
e logica. Quero disciplinar a mi-
nha vida (e, consequentemente, a
minha obra) como a um estado anar-
chico, e anarchico pelo proprio ex-
cesso de "forças vivas" em acção, con-
flicto e evolução inter connexa e divergente.
Não sei se estou sendo perfeitamente
lucido. Creio que estou sendo sincero.
Tenho pelo menos aquelle amargo de
espirito que é trazido pela practica
anti-social da sinceridade. Sim, eu
devo estar a ser sincero.


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Não se admire v. d'esta minha atti-
tude para commigo mesmo. Tenho vi-
vido tanto e tão cançado tempo
commigo que estou sempre de pé a-
traz para com o que sinto e penso.
Muitas vezes, creio firmemente, levo
horas intellectuaes a intrujar-me a
mim-proprio. D'ahi a necessidade
em que estou de me acautelar sempre
com que o que digo. Repare v.
em que, se ha parte da minha obra
que tenha um "cunho de sinceridade",
essa parte é... a obra do Caeiro.

Inutil e criminal, porém, o estal-o
maçando com isto. Passo adeante,
deixando-me.
            ─────

O Sá-Carneiro resolveu-se afinal
a deixar Paris. Agora está em Bar-
celona, se é que não decidiu já
vir para Lisboa, o que naturalmente,
mais tarde ou menos, acontece. A-
cho que elle fez bem. Como a guerra
vae correndo, não parece impossivel um
cerco de Paris pelos allemães — o que, de
resto, naturalmente pouco altera a sua
probabilissima derrota final.
            ─────


4              4 Setembro 1914.
O Sá-Carneiro está actualmente
no Palace-Hotel, Ronda de S. Pedro,
Barcelona.

Na ultima carta que me escreveu
deu-me como muito provavel a
sua proxima vinda para Lisboa. Parece
que embirrou solemnemente com
Barcelona.

Meu caro Côrtes-Rodrigues: tenho
tido immenso que fazer no escripto-
rio estes ultimos dias, inesperada-
mente, com a entrada de um
novo socio ou semi-socio. Porisso
lhe escrevo tão pouco. Para a
outra mala conto dar melhor
conta de mim como correspon-
dente.

Esta carta, estou a terminando
literalmente á ultima hora.

Dê os meus cumprimentos ao
seu Pae e sinta-se apertada-
mente abraçado pelo
            sempre e muito seu
            Fernando Pessoa