Amor - Usa Jerónimo Pizarro(351)

Uma só coise me maravilha mais


L. do D.

Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a intelligencia que ha nessa estupidez.

A monotonia das vidas vulgares é, apparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cosinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o creado já velho que me serve, como ha trinta annos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as d'estes homens? Ha quarenta annos que aquella figura de homem vive quasi todo o dia numa cosinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vae de vez em quando á terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cosinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galliza; está em Lisboa ha quarenta annos e nunca foi sequer á Rotunda, nem a um theatro, e ha um só dia de Coliseu-palhaços nos vestigios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solemne, uma contente felicidade. E elle não disfarça, nem [ha] razão para que disfarce. Se a sente, é porque verdadeiramente a tem.

E o creado velho que me serve, e que acaba de depôr ante mim o que deve ser o millionessimo café da sua deposição de café em mezas? Tem a mesma vida que a do cosinheiro, apenas com a differença de quatro ou cinco metros — os que distam da localização de um na cosinha para a localização do outro na parte de fóra da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vae mais vezes á Galliza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro annos, e é egualmente feliz.

Revejo, com um pasmo assustado, o panorama d'estas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta d'ellas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os proprios que teriam direito a tel-as, são os mesmos que vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literaria: suppor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao genio, apenas, o ser mais alguns outros.

Tudo, afinal, é dado em relação áquillo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama á porta o cosinheiro d'esta casa, entretem-o mais que me entretem a mim a contemplação da idéa mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inuteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o facto é que elle escapou á monotonia mais do que eu. E escapa á monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com elle nem commigo, porque não está com ninguem; mas a felicidade está com elle deveras.

Sabio é quem monotoniza a existencia, pois então cada pequeno incidente tem um privilegio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cosinheiro monotono uma scena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalypse modesto. Quem nunca sahiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Bemfica, e, se um dia vae a Cintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra, de cinco mil milhas em deante, novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda d'ellas.

Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gosar o espectaculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem fallar com alguem, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.

Monotonizar a existencia, para que ella não seja monotona. Tornar anodyno o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, egual e inutil, surgem-me visões de fuga, vestigios sonhados de ilhas longinquas, festas em aleas de parques de outras eras, outras paysagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada d'isso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escriptorio da Rua dos Douradores do que as grandes aleas dos parques impossiveis. Tendo o patrão Vasques, posso gosar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escriptorio da Rua dos Douradores, posso gosar a visão interior das paysagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paysagens impossiveis, que me restaria de impossivel?

A monotonia, a egualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma differença de hoje para hontem — isto me fique sempre, com a alma disperta para gosar da mosca que me distrahe, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue voluvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o escriptorio, o repouso infinito de um dia feriado.

Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fôsse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa existir.