Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(85)

Depois que as ultimas chuvas


L. do D.

Depois que as ultimas chuvas deixaram o
céu e ficaram na terra — céu limpo, terra hu-
mida e espelhenta — a clareza maior da vida
que com o azul voltou ao alto, e na frescura
de ter havido agua se alegrou em baixo, deixou
um céu proprio nas almas, uma frescura sua nos
corações.

Somos, por pouco que o queiramos, servos
da hora e das suas cores e fórmas, subditos
do céu e da terra. Aquelle de nós que mais se
embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cer-
ca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos
caminhos quando chove do que quando o céu es-
tá bom. Obscuras transmutações, sentidas tal-
vez só no intimo dos sentimentos abstractos,
se operam porque chove ou deixou de chover, se
sentem sem que se sintam porque sem sentir o
tempo se sentiu.

Cada um de nós é varios, é muitos, é uma
prolixidade de si mesmos. Porisso aquelle que
despreza o ambiente não é o mesmo que d'elle
se alegra ou padece. Na vasta colonia do nosso
ser ha gente de muitas especies, pensando e
sentindo differentemente. Neste mesmo momento,
em que escrevo, num intervallo legitimo do
trabalho hoje escasso, estas poucas palavras
de impressão, sou o que as escreve attentamen-
te, sou o que está contente de não ter nesta
hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu
lá fóra, invisivel de aqui, sou o que está
pensando isto tudo, sou o que sente o corpo
contente e as mãos ainda vagamente frias. E
todo este mundo meu de gente entre si alheia
projecta, como uma multidão diversa mas com-
pacta, uma sombra unica — este corpo quieto
e escrevente com que reclino, de pé, contra a
secretária alta do Borges onde vim
buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestára.

                                30/12/1932.