Amor - Usa Jerónimo Pizarro(314)

O unico viajante com verdadeira alma


L. do D.

O unico viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escriptorio que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito colleccionava folhetos de propaganda de cidades, paizes e companhias de transportes; tinha mappas — uns arrancados de periodicos, outros que pedia aqui e alli —; tinha, recortadas de jornaes e revistas, illustrações de paisagens, gravuras de costumes exoticos, retratos de barcos e navios. Ia ás agencias de turismo, em nome de um escriptorio hypothetico, ou talvez em nome de qualquer escriptorio existente, possivelmente o proprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Italia, folhetos de viagens para a India, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Australia.

Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era tambem uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito d'elle, ou, na verdade, supponho sòmente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez annos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estupido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer — morto, emfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, elle que tão bem viajava com a alma.

Recordo-me de repente: elle sabia exactamente por que vias ferreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias ferreas se percorria a Inglaterra, e, atravez das pronuncias erradas dos nomes extranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre, como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordeus do que desembarcar em Bordeus.

E, de ahi, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e elle estivesse sòmente imitando alguem. Ou... Sim, julgo às vezes, considerando a differença hedionda entre a intelligencia das creanças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infancia por um espirito da guarda, que nos empresta a propria intelligencia astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animaes ás crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino. alguem