O poente está espalhado pelas nuvens


L. do D.

7-10-1931

O poente está espalhado pelas nuvens soltas separadas que o céu todo tem. Reflexos de todas as côres, reflexos brandos, enchem as diversidades do ar alto, boiam ausentes nas grandes maguas da altura. Pelos cimos dos altos telhados erguidos, meio-cor, meio-sombras, os ultimos raios lentos do sol indo-se tomam fórmas de cor que nem são suas nem das coisas em que pousam. Ha um grande socego acima do nivel ruidoso da cidade que vae tambem socegando. Tudo respira para além da cor e de som, num hausto fundo e mudo.

Nas casas coloridas que o sol não vê, as cores começam a ter tons de cinzento d'ellas. Ha frio nas diversidades d'essas cores. Dorme uma pequena inquietação nos valles falsos das ruas. Dorme e socega. E pouco a pouco, nas mais baixas das nuvens altas, começam os reflexos a ser de sombra; só naquella pequena nuvem, que paira aguia branca acima de tudo, o sol conserva, de longe, o seu ouro rindo.

Tudo quanto tenho buscado na vida, eu mesmo o deixei por buscar. Sou como alguem que procure distrahidamente o que, no sonho entre a busca, esqueceu já o que era. Torna-se mais real que a cousa buscada ausente o gesto real das mãos visiveis que buscam, revolvendo, deslocando, assentando, e existem brancas e longas, com cinco dedos cada uma, exactamente.

Tudo quanto tenho tido é como este ceu alto e diversamente o mesmo, farrapos de nada tocados de uma luz distante, fragmentos de falsa vida que a morte doura de longe, com seu sorriso triste de verdade inteira. Tudo quanto tenho tido, sim, tem sido o não ter sabido buscar, senhor feudal de pantanos à tarde, principe deserto de uma cidade de tumulos vazios.

Tudo quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso do que sou ou fui — tudo isso perde de repente — nestes meus pensamentos e na perda subita de luz da nuvem alta — o segredo, a verdade, a ventura talvez, que houvesse em não sei quê que tem por baixo a vida. Tudo isso, como um sol que falta, é que me resta, e sobre os telhados altos, diversamente, a luz deixa escorregar as suas mãos de queda, e sahe á vista, na unidade dos telhados, a sombra intima de tudo.

Vago pingo tremulo, clareia pequena ao longe a primeira estrella.


Título: O poente está espalhado pelas nuvens
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 178
Página: 202 - 203
Data: 07-10-1931
Nota: [2-44, dact.];