De qualquer viagem, ainda que pequena


De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como de um sono cheio de sonhos — uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.

Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.

Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas. E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito.

Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre gozando somente o pé em terra de quando estou de volta.

Quando se sente de mais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.


Título: De qualquer viagem, ainda que pequena
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 571
Página: 455 - 456
Nota: [2-50, ms.];