Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-52r)

O unico viajante com verdadeira alma


           

L. do D.

O unico viajante com verdadeira alma que conhe-
ci era um garoto de escriptorio que havia numa outra casa,
onde em tempos fui empregado. Este rapazito colleccionava
folhetos de propaganda de cidades, paizes e companhias de
transportes; tinha mappas — uns arrancados de periodicos,
outros que pedia aqui e alli —; tinha, recortadas de jor-
naes e revistas, illustrações de paisagens, gravuras de
costumes exoticos, retratos de barcos e navios. Ia ás a-
gencias de turismo, em nome de um escriptorio hypothetico,
ou talvez em nome de qualquer escriptorio existente, pos-
sivelmente o proprio onde estava, e pedia folhetos sobre
viagens para a Italia, folhetos de viagens para a India,
folhetos dando as ligações entre Portugal e a Australia.

Não só era o maior viajante, porque o mais ver-
dadeiro, que tenho conhecido: era tambem uma das pessoas
mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de
não saber o que é feito d'elle, ou, na verdade, supponho
sòmente que deveria ter pena; na realidade não a tenho,
pois hoje, que passaram dez annos, ou mais, sobre o breve
tempo em que o conheci, deve ser homem, estupido, cumpri-
dor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social
de qualquer — morto, emfim, em sua mesma vida. É até capaz
de ter viajado com o corpo, elle que tão bem viajava com
a alma.

Recordo-me de repente: elle sabia exactamente
por que vias ferreas se ia de Paris a Bucarest, por que
vias ferreas se percorria a Inglaterra, e, atravez das pro-
nuncias erradas dos nomes extranhos, havia a certeza aureo-
lada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido
para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre, como
é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordeus
do que desembarcar em Bordeus.

E, de ahi, talvez isto tudo tivesse outra expli-
cação qualquer, e elle estivesse sòmente imitando alguem.
Ou... Sim, julgo às vezes, considerando a differença hedionda
entre a intelligencia das creanças e a estupidez dos adul-
tos, que somos acompanhados na infancia por um espirito
da guarda, que nos empresta a propria intelligencia astral,
e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos
abandona, como as mães animaes ás crias crescidas, ao ce-
vado que é o nosso destino. alguem