Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(21)

Tudo se me evapora


L. do D.

Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquillo a que assisto é um espectaculo com outro scenario. E aquillo a que assisto sou eu.

Encontro ás vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literarias, papeis escriptos por mim ha dez annos, ha quinze annos, há mais annos talvez. E muitos d'elles me parecem de um extranho; desreconheço-me nelles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora dispertado como de um somno alheio.

É frequente eu encontrar coisas escriptas por mim quando ainda muito jovem — trechos dos dezassete annos, trechos dos vinte annos. E alguns teem um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Ha em certas phrases, em varios periodos, de coisas escriptas a poucos passos da minha adolescencia, que me parecem producto de tal qual sou agora, educado por annos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Ha nisto um mysterio que me desvirtua e me opprime.

Ainda ha dias soffri uma impressão espantosa com um breve escripto do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrupulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de ha poucos annos. Encontrei numa gaveta um escripto meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrupulo estava fortemente accentuado. Não me comprehendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci hontem? E tudo se me confunde num labyrintho onde, commigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo, já o escrevi. Recórdo. E pergunto ao que em mim presume do ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas d'esta vida...

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervallo que ha entre mim e mim?