Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 3-7)

Depois dos dias todos de chuva


                                        1/2/1931.

Depois dos dias todos de chuva, de novo o céu traz
o azul, que escondera, aos grandes espaços do alto.
Entre as ruas, onde as poças dormem como
charcos do campo, e a alegria clara que esfria
no alto, ha um contraste que torna agra-
daveisapraziveis as ruas sujas e primaveril o céu de
inverno bom. É domingo e não tenho
que fazer. Nem sonhar me appetece, de
tam bem que está o dia. Goso-o com
uma sinceridade de sentidos a que
a intelligencia se abandona. Passeio
como um caixeiro liberto sem mulher. Sinto-me
velho, só para ter o prazer de me
sentir rejuvenescer.

Na grande praça dominical ha
um movimento solemne de outra especie
de dia. Em S. Domingos ha a sahida de
uma missa, e vae principiar outra. Vejo
uns que sahem e uns que ainda não entram,
esperando por entrevistos na espera de alguns que não nem estão vendo
quem sahe.

Todas estas coisas não teem importancia. São,
como tudo no comum da vida, um somno
dos mysterios e das ameias, e eu d'alli olho,
como um arauto chegado que já disse a que ia, a planicie
da minha meditação.

Outrora, creança, eu ia a esta mesma
missa, ou porventura á outra, mas devia
ser a esta. Punha com a devida consciencia
o meu unico fato melhor, e gosava
tudo — até o que não tinha razão de gosar.
Vivia por fóra e o fato era limpo e
novo. Que mais quere quem tem que
morrer e o não sabe nada pela mão da mãe?


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Outrora gosava tudo isto, porém é agora,
talvez, que comprehendo quanto
o gosava. Entrava para a missa como
para um grande mysterio, e sahia da
missa como para uma clareira. E assim é
que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é.
Só o ser que não crê e é adulto tem corpo adulto, a
alma que recorda e chora, são a
ficção e o transtorno, o desalinho e
a lagem fria.

Sim, o que eu sou fôra insupportavel
se eu não pudesse lembrar-me do que fui.
E esta multidão alheia que continua persiste ainda em a sahir
da missa, e o principio da multidão possivel
que começa a chegar para entrar estar para a
outra — tudo isto são como barcos que
passam por um rio lento,
sob as janellas abertas fechadas do meu lar
erguido sobre a margem.

Memorias, domingos, missas, prazer
de haver sido, milagre do tempo que
ficou por ter passado, e não esquece
nunca porque foi meu... Diagonal
absurda das sensações normaes,
som subito de carruagem de praça que
sôa rodas no fundo dos silencios rui-
dosos dos automoveis, e de qualquer
modo, por um paradoxo material do
tempo, subsiste hoje, aqui mesmo,
entre o que sou e o que perdi, no
intervallo de mim que sou a que chamo eu...