Amor - Usa Jerónimo Pizarro(310)

Depois dos dias todos de chuva


1/2/1931

Depois dos dias todos de chuva, de novo o céu traz o azul, que escondera, aos grandes espaços do alto. Entre as ruas, onde as poças dormem como charcos do campo, e a alegria clara que esfria no alto, ha um contraste que torna apraziveis as ruas sujas e primaveril o ceu de inverno bom. É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me appetece, de tam bem que está o dia. Goso-o com uma sinceridade de sentidos a que a intelligencia se abandona. Passeio como um caixeiro sem mulher. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer.

Na grande praça dominical ha um movimento solemne de outra especie de dia. Em S. Domingos ha a sahida de uma missa, e vae principiar outra. Vejo uns que sahem e uns que ainda não entram, entrevistos na espera de alguns que nem estão vendo quem sahe.

Todas estas coisas não teem importancia. São, como tudo no comum da vida, um somno dos mysterios e das ameias, e d'alli olho, como um arauto que já disse a que ia, a planicie da minha meditação.

Outrora, creança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura á outra, mas devia ser a esta. Punha com a devida consciencia o meu unico fato melhor, e gosava tudo — até o que não tinha razão de gosar. Vivia por fóra e o fato era limpo e novo. Que mais quere quem tem que morrer e o não sabe /nada/ pela mão da mãe?

Outrora gosava tudo isto, porém e só agora, talvez, que comprehendo quanto o gosava. Entrava para a missa como para um grande mysterio, e sahia da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e tem corpo adulto, a alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lagem fria.

Sim, o que eu sou fóra insupportavel, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que persiste ainda em sahir da missa, e o principio da multidão possivel que começa a chegar para estar para a outra — tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janellas fechadas do meu lar erguido sobre a margem.

Memorias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações normaes, som subito de carruagem de praça que sôa rodas no fundo dos silencios ruidosos dos automoveis, e de qualquer modo, por um paradoxo material do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no intervallo de mim a que chamo eu...