Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-68r)

Passaram mezes sobre o ultimo que escrevi


                                16/3/1932.

L. do D.

Passaram mezes sobre o ultimo que escrevi.
Tenho estado num somno do entendimento pelo qual te-
nho sido outro na vida. Uma sensação de felicidade
translata tem-me sido frequente. Não tenho existido,
tenho sido outro, tenho vivido sem pensar.

Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me
sonho. Foi um momento de grande cansaço, depois de
um trabalho sem relevo. Pousei a cabeça
contra as mãos, fincados os cotovellos na mesa alta
inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.

Num somno falso longinquo relembrei tudo
quanto fôra, e foi com uma nitidez de paysagem vista
que se me ergueu de repente, antes ou depois de tu-
do, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio
da visão, a eira se erguia vazia.

Senti immediatamente a inutilidade da vida.
Vêr, sentir, lembrar, esquecer - tudo isso se me con-
fundiu, numa vaga dôr nos coto-
vellos, com o murmurio incerto da rua proxima e os
pequenos ruidos do trabalho socegado no escriptorio
quedo.

Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao
alto, lancei sobre o que via o olhar que deveria ser
de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coi-
sa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquelle
vago zumbido que não era do escriptorio!) poisada
em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abysmo,
anonymo e disperto. Ella tinha tons verdes de azul preto,
e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida!

Quem sabe para que forças supremas, deuses
ou demonios da Verdade em cuja sombra erramos, não
serei senão a mosca lustrosa que poisa um momento dean-
te d'elles? Reparo facil? Observação já fei-
ta? Philosophia sem pensamento? Talvez, mas eu não
pensei: senti. Foi carnalmente, directamente, com
um horror profundo e escuro, que fiz a comparação risivel
. Fui mosca quando me comparei à mosca.
Senti-me mosca quando suppuz que me o senti. E senti -me
uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado
mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu.
Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto,
não baixasse sobre mim uma regua suprema, a esmagar-
me, como eu poderia esmagar aquella mosca. Felizmente,
quando baixei os olhos, a mosca, sem ruido que eu
ouvisse, desapparecera. O escriptorio involuntario
estava outra vez sem philosophia.