Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-13r)

Tenho sido sempre um sonhador ironico


L. do D.

Tenho sido sempre um sonhador ironico, infiel
ás promessas interiores. Gosei sempre, como outro e ex-
trangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente
casual ao que pensei ser. Nunca dei crença àquillo em
que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe a ouro,
e abri as mãos d'ella toda, escorrente. A phrase fôra era a
unica verdade. Com a phrase dita estava tudo feito; o
mais era a areia que sempre fôra já era.

Se não fôsse o sonhar sempre, o viver num per-
petuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-
me um realista, isto é, um individuo para quem o mundo
exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser
o que sou com uma certa curta breve(?) obscuridade e ter commigo a mali-
cia de me não saber prever.

Tenho uma especie de dever de sonhar sempre,
pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espec-
tador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectaculo que
posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas
suppostas, palco falso, scenario antigo, sonho creado en-
tre jogos de luzes brandas e musicas invisiveis.

Guardo, intima, como a memoria de um beijo grato,
a lembrança de infancia de um theatro em que o scenario azulado e lunar re-
presentavafigurava o terraço de um palacio impossivel. Havia, pin-
tado tambem, um parque vasto em roda, e gastei a alma em
viver como real aquillo tudo. A musica, que soava branda
nessa ocasião mental da minha experiencia da vida, trazia para
real de febre esse scenario dado.

O scenario era definitivamente azulado e lunar. No palco
não me lembro quem apparecia, mas a peça que ponho na pai-
sagem lembrada sahe-me hoje dos versos de Verlaine e de Pessa-
nha; não era a que deslembro, passada no palco vivo àquem d'a-
quella realidade de azul musica. Era minha e fluida, a mascarada immensa
e lunar, o interludio de a prata e azul findo.

Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me
a cear ao Leão. Tenho ainda a memoria dos bifes no pa-
ladar da saudade — bifes, sei ou porque supponho, como hoje ninguem faz ou eu não como. E
tudo se me mixtura — infancia vivida a distancia, comida saborosa de noite, scenario
lunar, Verlaine futuro e eu presente — numa diagonal dif-
fusaconfusa, num espaço falso entre o que fui e o que sou.

                                              16/10/1931.