Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(219)

Não me lembro da minha mãe


Não me lembro da minha mãe. Ella
morreu tinha eu um anno. Tudo o que
ha de disperso e duro na minha sensi-
bilidade vem da ausencia d'esse callor e
da saudade inutil dos beijos,
de que me não lembro. Sou postiço.
Acordei Despertei sempre contra seios outros, accalentado por desvio.
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Ah, é a saudade do outro que
eu poderia ter sido que me dispersa
e sobresalta! Quem outro seria eu se
me tivessem dado carinho do que vem desde o
ventre até aos beijos na cara pequena?
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Reconheço, não sei se com tristeza, a
seccura humana do meu coração. Vale mais para
mim um adjectivo que um
pranto real da alma,
          O meu mestre Vieira

Mas às vezes sou
differente, e tenho


lagrimas, lagrimas das quentes, dos que
não teem nem tiveram mãe;

e meus olhos que ardem de essas lagrimas mortas ardem
dentro adentro d'ellas dentro do meu coração.



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Talvez que a saudade de não ser filho
tenha grande parte na minha indifferença
sentimental. Quem, em creança, me apertou
contra a cara não me podia apertar
contra o coração. Essa estava longe,
num jazigo — essa que me pertenceria,
se o Destino houvesse querido que me
pertencesse.

Disseram-me, mais tarde, que minha
mãe era bonita, e dizem que, quando m'o disseram,
eu não disse nada. Era já apto de corpo e
alma, desentendido de emoções, e o fallarem ainda não era
uma noticia de outras paginas, difficeis de imaginar.

Meu pae, que vivia longe, matou-se
quando eu tinha trez annos e nunca o co-
nheci. Não sei ainda porque é que vivia longe. Nunca me importei de o saber. Lembro-me da noticia da sua morte

como de uma grande seriedade ás primeiras refeições
depois de a saber. Olhavam, lembro-me, de vez em quando
para mim. E eu olhava de troco,

entendendo
estupidamente.
Depois comia
com mais regra, pois talvez, sem eu ver,
continuassem a olhar.

Sou todas estas coisas, embora
o não queira, no fundo
confuso da minha sensibilidade
fatal.


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em principados de desespero...