Intertextualidade Filosófica - Usa (BNP/E3, 4-37-40)

Ha uma erudição do conhecimento


        L. do D.

Ha uma erudição do conhecimento, que é propriamente o
que se chama erudição, e ha uma erudição do entendimento,
que é o que se chama cultura. Mas ha tambem uma erudição
da sensibilidade.

A erudição da sensibilidade nada tem que ver com a ex-
periencia da vida. A experiencia da vida nada ensina, como
a historia nada informa. A verdadeira experiencia consiste
em restringir o contacto com a realidade e augmentar a ana-
lyse d'esse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e a-
profunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos
e o saibamos procurar.

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é
o poente; não é mister ir vel-o a Constantinopla. A sensa-
ção de libertação, que nasce das viagens? Posso tel-a sahin-
do de Lisboa até Bemfica, e tel-a mais intensamente do que
quem vá de Lisboa á China, porque se a libertação não está
em mim, não está, para mim, em parte alguma. "Qualquer es-
trada" disse Carlyle, "até esta estrada de Entepfuhl, te
leva até ao fim do mundo". Mas a estrada de Entepfuhl, se
fôr seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo
que o Entepfuhl, onde já estavamos, é aquelle mesmo fim do
mundo que iamos a buscar.


Condillac começa o seu livro celebre, "Por mais alto
que subamos e mais baixo que desçamos, nunca sahimos das
nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca che-
gamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensi-
vel de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que
nós mesmos creamos, porque assim, sendo deuses d'ellas, as
vemos como ellas verdadeiramente são, que é como foram cre-
adas. Não é nenhuma das septe partidas do mundo aquella
que me interessa e posso verdadeiramente vêr; a oitava par-
tida é que percorro e é minha.

Quem cruzou todos os mares cruzou sómente a monotonia
de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais
montanhas que as que ha na terra. Passei já por cidades
mais que existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos
fluiram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se
viajasse, encontraria a copia debil do que já vira sem via-
jar.

Nos paises que os outros visitam, visitam-nos anonymos
e peregrinos. Nos paizes que tenho visitado, tenho tido tenho sido, não
só o prazer escondido do viajante incognito, mas a majestade
do Rei que alli reina, e o povo cujo uso alli habita, e a
historia inteira d'aquella nação e das outras. As mesmas
paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas
em Deus com a substancia da minha imaginação.


3)

A renuncia é a libertação. Não querer é poder.

Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha
já dado? E, se a minha alma m'o não pode dar, como m'o
dará a China, se é com minha alma que verei a China, se
a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não
riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu,
e eu estou onde estou, sem Oriente ou com elle.

Comprehendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por
isso são tam pobres sempre como livros de experiencia os livros de viagens, valendo
sómente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os
escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a
descripção minuciosa, photographica a estandartes, de
paisagens que imaginou, como com a descripção, forçosa-
mente menos minuciosa, das paisagens que suppoz ver.
Somos todos myopes, excepto
para dentro. Só
o sonho vê com (o) olhar.


No fundo, ha na nossa experiencia da terra duas coisas
só — o universal e o particular. Descrever o universal
é descrever o que é commum a toda a alma humana e a toda
a experiencia humana — o ceu vasto, com o dia e a noite
que acontecem d'elle e nelle; o correr dos rios — todos
da mesma agua sororal e fresca; os mares, montanhas tre-
mulamente extensas, guardando a majestade da altura no
segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas,
as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as
guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite
sem fórma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro
intellectual que é tudo... Descrevendo isto, ou qual-
quer cousa universal como isto, fallo com a alma a lingua-
gem primitiva e divina, o idioma adamico que todos en-
tendem. Mas que linguagem estilhaçada e babelica fallaria
eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Cathe-
dral de Rheims, os calções dos zuavos, a maneira como o
portuguez se pronuncia em Traz os Montes? Estas coisas
são accidentes da superficie; podem sentir-se com o andar
mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é
o universal é a mechanica facilitando o mundo. O que na
Cathedral de Rheims é verdade não é a Cathedral nem o
Rheims, mas a majestade religiosa dos edificios consagra-
dos ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que
nos calções dus zuavos é eterno é a ficção colorida dos
trajes, linguagem humana, creando uma simplicidade social
que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronuncias
locaes é universal é o timbre caseiro das vozes de gen-
te que vive espontanea, a diversidade dos seres junctos,
a successão multicolor das maneiras, as differenças o limite dos
povos, e a vasta variedade das nações.


Transeuntes eternos por nós mesmos, não ha paisagem
se não o que somos. Nada possuimos, porque nem a nós
possuimos. Nada temos porque nada somos. Que mãos exten-
derei para que universo? O universo não é meu: sou eu.