Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(233)

Nevoa ou fumo?


L. do D.

Nevoa ou fumo? Subia da terra ou descia do ceu?
Não se sabia: era mais como uma doença do ar
que uma descida ou uma emanação. Por vezes
parecia mais uma doença molestia dos olhos que uma reali-
dade da natureza.

Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma
inquietação turva, feita de esquecimento e de attenua-
ção. Era como se o silencio do mau sol tomasse
para seu um corpo imperfeito. Dir-se-hia
que ia acontecer qualquer cousa e que por toda
a parte havia uma intuição, pela qual
o visivel se velava turbava turvava.

Era difficil dizer se o ceu tinha nuvens ou antes
nevoa. Era um torpor baço, aqui e alli colorido,
um acinzentamento imponderavelmente amarellado,
salvo onde se esboroava em côr-de-rosa falso,
ou onde estagnava azulescendo, mas ahi não
se distinguia se era o ceu que se revelava, se era
outro azul que o encobria.

Nada era definido, nem o indefinido. Porisso
appetecia chamar fumo á nevoa, por ella não
parecer nevoa, ou perguntar se era nevoa ou
fumo, por nada se perceber do que era. O
mesmo calor do ar collaborava na duvida. Não
era calor, nem frio, nem fresco; parecia compôr a
sua temperatura de elementos tirados de outras
coisas que o calor. Dir-se-hia, deveras, que
uma nevoa fria aos olhos era quente ao tacto,


como se tacto e vista fossem dois modos sensiveis
do mesmo sentido.

Nem era, em torno dos contornos das ar-
vores, ou das esquinas dos edificios, aquelle esbater
de recortes ou de arestas, que a ver-
dadeira nevoa traz, estagnando, ou o verda-
deiro fumo, natural, entreabre e entrescurece.
Era como se cada cousa projectasse de si uma
sombra vagamente diurna, em todos os
sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem
logar de projecção que a
justificasse como visivel.

Nem visivel era: era como um começo
de ir a ver-se qualquer cousa, mas em toda a
parte por egual, como se o a revelar
hesitasse em ser apparecido.

E que sentimento havia? A impossibilidade
de o ter, o coração desfeito na cabeça,
os sentimentos confundidos, um torpor
da existencia disperta, um apurar de qualquer
coisa animica como o ouvido para uma
revelação definitiva, inutil, sempre
a apparecer , como a verdade, sempre, como a
verdade, gemea de nunca apparecer.

Até a vontade de dormir, que lembra ao
pensamento, desappetece, por parecer um ex-
forço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer
os olhos. E, na abdicação incolor da alma in-
teira, só os ruidos exteriores, longe, são o mundo
impossivel que ainda existe.

Ah, outro mundo, outras cousas, outra alma com
que sentil-as, outro pensamento com que saber dessa
alma! Tudo, até o tedio, menos
este esfumar comum da alma e das
coisas, este desamparo azulado da
indefinição de tudo!

                              2-11-1932.