Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(416)

Eu não sonho possuir-te


Eu não sonho possuir-te. Para
que? Era traduzir para plebeu
o meu sonho. Possuir um
corpo é sêr banal. Sonhar
possuir um corpo é talvez
peor, ainda que seja difficil sel-o:
é sonhar-se banal — horror
supremo.

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E já que queremos ser estereis,
sejamos tambem castos, porque
nada pode haver de mais
ignobil e baixo do que,
renegando da Natureza o
que n'ella é fecundado, guardar
villãmente d'ella o que nos
praz no que renegámos.
Não ha nobreza aos bocados.

Sejamos castos como eremitas labios mortos,
puros como corpos sonhados,
resignados a ser tudo isto,
como freirinhas doidas...

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Que o nosso amor seja uma
oração... Unge-me de vêr-te
que eu farei dos meus momentos
de te sonhar um rosario onde
os meus tedios serão padre-nossos
e as minhas angustias ave-marias...

Fiquemos assim eternamente
como uma figura de homem em vitral
defronte de uma figura de mulher n'outro
vitral... Entre nós, sombras cujos passos
sôam frios, a humanidade passando...
Murmurios de rezas, segredos de
          passarão entre nós... Umas
vezes enche-se bem o ar de  
de incensos. Outras vezes, para este lado
e para aquelle uma figura de estola


rezará aspersões... E nós sempre os
mesmos vitraes, ora côres quando o sol
nos bata, ora linhas quando a
noite caia... Os seculos não tocarão
no nosso silencio vitreo... Lá fóra
passarão civilizações, escacharão
revoltas, turbilhonarão festas, correrão
mansos quotidianos povos... E nós, ó
meu amôr irreal, teremos sempre o mesmo
gesto inutil, a mesma existencia falsa,
e a mesma                
    até um dia, no fim de uns seculos
de imperios, a Egreja finalmente rúa
e tudo acabe...

Mas nós que não sabemos d'ella ficaremos
ainda, não sei como, não sei em que espaço,
não sei porque tempo, vitraes eternos,
horas de ingenuo desenho pintado
por um qualquer artista que dorme ha muito
sob um tumulo godo onde dois anjos
de mãos postas gelam em marmore
a idéa de morte.