Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(279)

ANTEROS


L. do D.
ANTEROS

O Amante Visual

Tenho do amor profundo e do uso proveitoso d'elle um conceito superficial e decorativo. Sou sujeito a paixões visuaes. Guardo intacto o coração dado a mais irreaes destinos.

Não me lembro de ter amado senão o "quadro" em alguem, o puro exterior — em que a alma não entra para mais que fazer esse exterior animado e vivo — e assim differente dos quadros que os pintores fazem.

Amo assim: fixo, por bella, attrahente, ou, de outro qualquér modo, amável, uma figura, de mulher ou de homem — onde não há desejo, não ha preferencia de sexo — e essa figura me obceca, me prende, se apodera de mim. Porém não quero mais que vel-a, nem [...] nada mais [...] que a faculdade de vir a conhecer e a fallar à pessoa real que essa figura apparentemente manifesta.

Amo com o olhar, e nem com a phantasia. Porque nada phantasio dessa figura que me prende. Não me imagino ligado a ella de outra maneira [...] Não me interessa saber que é, que faz, que pensa a creatura que me dá para ver o seu aspecto exterior.

A immensa série de pessoas e de cousas que fórma o mundo é para mim uma galeria intérmina de quadros, cujo interior me não interessa. Não me interessa, porque a alma é monotona e sempre a mesma em toda a gente; differentes apenas as suas manifestações pessoaes, e o melhor d'ella é o que transborda para o sonho, para os modos, para os gestos, e assim entra para o quadro que me prende, [...]

Assim vivo, em visão pura, o exterior animado das cousas e dos seres, indifferente, como um deus de outro mundo, ao conteúdo-spirito d'elles. Aprofundo o ser proprio só em extensão, e quando anseio a profundeza, é em mim e no meu conceito das cousas que a procuro.

Que pode dar-me o conhecimento pessoal da creatura que assim amo em décor? Não uma desillusão, porque, como nella só amo o aspecto, e nada d'ella phantasio, a sua estupidez ou mediocridade nada tira, porque eu não esperava nada senão o aspecto que não tinha que esperar, e o aspecto persiste. Mas o conhecimento pessoal é nocivo porque é inutil, e o inutil material é nocivo sempre. Saber o nome da creatura para quê? e é a primeira cousa que, apresentado a ella, fico sabendo.

O conhecimento pessoal precisa ser, tambem, de liberdade de contemplação, e que o meu género de amar deseja. Não podemos fitar, contemplar em liberdade quem conhecemos pessoalmente.

O que é superfluo é a menos para o artista, porque, perturbando-o, diminui o effeito.

O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das apparencias e da manifestação das cousas — objectivista dos sonhos, amante visual das fórmas e dos aspectos da natureza.

Não é um caso do que os psychiatras chamam onamismo psychico, nem sequér do que chamam erotomania. Não phantasio, como no onamismo psychico; não me figuro em sonho amante carnal, nem sequer amigo de falla, da creatura que fito e recórdo: nada phantasio d'ella. Nem, como o erotomano, a idealizo e a transporto para fóra da sphera da esthetica concreta: não quero d'ella, ou penso d'ella, mais que o que me dá aos olhos e à memoria directa e pura do que os olhos viram.