Chove muito, mais, sempre mais...


L. do D.

Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma [...] que vae desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planicie, uma planicie de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é côr de chuva, negro pallido.

Tenho sensações estranhas, todas ellas frias. Ora me parece que a paysagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.

Uma especie de anteneurose do que serei quando já não fôr gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. N'uma nevoa de intuição sinto-me materia morta, calix na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.


Título: Chove muito, mais, sempre mais...
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 79
Página: 82
Nota: [5-2, ms.];