Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-20-21-22r)

Sempre neste mundo haverá a lucta


Sempre neste mundo haverá a lucta,
sem decisão nem victoria, entre o que
ama o que não ha porque existe, e o
que ama o que ha porque não existe. Sempre,
sempre, haverá o abysmo entre o que
renega o mortal porque é mortal, e o
que ama o mortal porque desejaria que
elle nunca morresse. Vejo-me aquelle
que fui na infancia, naquelle momento em
que o meu barco dado se virou no tanque
da quinta, e não ha philosophias que
substituam esse momento, nem
razões que me expliquem porque passou.
Lembro-o, e vivo; que vida melhor tens tu
para me dar?

— Nenhuma, nenhuma, porque tambem eu lembro.


Ah, lembro-me bem! Era na casa
velha da quinta antiga e ao serão;
depois de coserem e fazerem
meia, o chá vinha, e as torradas,
e o somno bom que eu
haveria de dormir. Dá-me
isto outra vez, tal qual era,
com o relogio a tictacar ao
fundo ouvido, e guarda para ti os
Deuses todos. Que me é um
Olympo que me não sabe ás
torradas do passado? Que tenho
eu com deuses que não teem onde não sôa o
meu relogio antigo?

Talvez tudo seja symbolo e sombra,
mas não gosto de symbolos e não gosto
de sombras. Restitue-me o passado
e guarda a verdade. Dá-me outra
vez a infancia e leva Deus contigo.


— Os teus symbolos! Se eu chorar na
noite, como uma creança com medo,
nenhum dos teus symbolos me
vem afagar no hombro e emballar
por alli até que eu durma. Se eu
me perder na estrada, tu não tens
Virgem Maria mulher que me venha
buscar pela mão. Tenho frio das
tuas transcendencias. Quero um lar
no Além. Julgas que alguem tem
sêde na alma de metaphysicas ou de
mysterios ou de altas verdades?

= De que é que se tem sede nessa alma?

— De qualquer coisa como tudo
que foi a nossa infancia. Dos
brinquedos mortos, das tias velhas idas.
Essas coisas é que são a realidade, em-
bora morressem. Que tem o Ineffavel
commigo?


Uma coisa... Tiveste algumas tias velhas, e alguma quinta antiga, e
algum chá e algum relogio?

— Não tive. Gostaria de ter tido. E tu viveste
á beira-mar?

= Nunca. Não o sabias?

— Sabia, mas acreditava. Para que descrer do que
só se suppõe?


Não sabes que este é um dialogo no jardim
do Palacio, um interludio lunar, uma
função em que nos entretemos enquanto as
horas passam para os outros?
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— Pois sim, mas eu estou a raciocinar...

— Está bem: eu não estou. O raciocinio é
a peor especie de sonho, porque é aquelle que
nos transporta para o sonho a re-
gularidade da vida que não ha, isto é,
é duplamente nada.


— Mas o que quere isso dizer?

(Pondo-lhe a mão no outro hombro, e envolvendo-o
num abraço.) — Ó filho, o que quere qualquer
coisa dizer?