Creei-me echo e abysmo


Creei-me echo e abysmo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O mais pequeno episodio — uma alteração sahindo da luz, a queda enrolada de uma folha secca, a petala que se despega amarellecida, a voz do outro lado do muro os passos de quem a diz junta aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pateo abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar — todas estas cousas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensivel com laços de ressonancia e de saudade. Em cada uma d'essas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida.

Vivo de impressões que me não pertencem, perdulario de renuncias, outro no modo como sou eu.


Título: Creei-me echo e abysmo
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 33
Página: 34 - 35
Nota: [5-19, ms. pt.];