L. do D.
Quem tenha lido as paginas d'este livro, que estão antes d'esta, terá sem duvida formado a idéa de que sou um sonhador. Ter-se-ha enganado se a formou. Para ser sonhador falta-me o dinheiro.
As grandes melancolias, as tristezas cheias de tedio, não podem existir senão com um ambiente de comforto e de sobrio luxo. Porisso o Egeus de Poe, concentrado horas e horas numa absorpção doentia, o faz num castello antigo, ancestral, onde, para além das portas da grande sala onde jaz a vida, mordomos invisiveis administram a casa e a comida.
O grande sonho requer certas circumstancias sociaes. Um dia que, embevecido por certo movimento rhythmico e dolente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand, não tardou que me lembrasse de que eu não era visconde, nem sequer normando. Outra vez que julguei sentir, no sentido do que dissera, uma similhança com Rousseau, não tardou, tambem, que me occorresse que, não [tendo] tido o privilegio de ser fidalgo e castellão, tambem o não tivera de ser suisso e vagabundo.
Mas, enfim, tambem ha universo na Rua dos Douradores. Tambem aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. E porisso, se são pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os sonhos que consigo extrahir de entre as rodas e as tabuas, ainda assim são para mim o que tenho, e o que posso ter.
Alhures, sem duvida, é que os poentes são. Mas até d'este quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito. Um infinito com armazens em baixo, é certo, mas com estrellas ao fim... É o que me occorre, neste acabar de tarde, á janella alta, na insatisfacção do burguez que não sou e na tristeza do poeta que nunca poderei ser.