Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 6-16r)

Quem tenha lido as paginas d'este livro


L. do D.

Quem tenha lido as paginas d'este livro, que estão
antes d'esta, terá sem duvida formado a idéa de que sou
um sonhador. Ter-se-ha enganado se a formou. Para ser so-
nhador falta-me o dinheiro.

As grandes melancolias, as tristezas cheias de tedio,
não podem existir senão com um ambiente de comforto e de
sobrio luxo. Porisso o Egeus de Poe, concentrado horas e
horas numa absorpção doentia, o faz num castello antigo,
ancestral, onde, para além das portas da grande sala onde
jaz a vida, mordomos invisiveis administram a casa e a
comida.

O grande sonho requer certas circumstan-
cias sociaes. Um dia que, embevecido por certo movimento
rhythmico e dolente do que escrevera, me recordei de
Chateaubriand, não tardou que me lembrasse de que eu não
era visconde, nem sequer bretão (normando). Outra vez
que julguei sentir, no sentido do que dissera, uma simi-
lhança com Rousseau, não tardou, tambem, que me occorresse
que, não [tendo] tido o privilegio de ser fidalgo e castellão,
tambem o não tivera de ser suisso e vagabundo.

Mas, enfim, tambem ha universo na Rua dos Douradores.
Tambem aqui Deus concede que não falte o enigma de viver.
E porisso, se são pobres, como a paisagem de carroças e
caixotes, os sonhos que consigo extrahir de entre as rodas
e as tabuas, ainda assim são para mim o que tenho, e
o que posso ter.

Alhures, sem duvida, é que os poentes são. Mas até
d'este quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infi-
nito. Um infinito com armazens em baixo, é certo, mas
com estrellas ao fim... É o que me occorre, neste acabar
de tarde, á janella alta, na insatisfacção do burguez que
não sou e na tristeza do poeta que nunca poderei ser.