Leitura Crítica 1 - Usa Jacinto do Prado Coelho(420)

Quanto mais avançamos na vida


Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pallidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam fórmas que na vida se não encontram; são comtudo sonhos, de que se accorda, que não constituem memorias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.

A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiencia de todas as coisas, de todos os logares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossivel, a vida só subjectivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substancia total.

Estas duas verdades são irreductiveis uma á outra. O sabio abster-se-ha de as querer conjugar, e abster-se-ha tambem de repudiar uma ou outra. Terá comtudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana proprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ella espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instincto dos gatos, que buscam o sol quando ha sol, e quando não ha sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espectaculo externo de todas as impressões. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuido.

O camponio, o leitor de novellas, o puro asceta — estes trez são os felizes da vida, porque são estes trez que abdicam da personalidade — um porque vive do instincto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo — quer haja sido, quer não — me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar d'ella. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.