Que me pesa que ninguem leia
L. do D.
Que me pesa que ninguem leia
o que escrevo? Escrevo-o ∧Escrevo-me para
me distrahir de viver, e pu-
blico-o∧publico-me porque o jogo tem essa
regra. Sem amanhã se perdessem
todos os meus escriptos, teria pena,
mas, creio bem, não uma pena
violenta e louca como seria
de suppor, pois que em tudo
isso ia toda a minha vida. Não
é certo, pois, que a mãe, morto
o filho, mezes depois já ri e
é a mesma. A grande
terra, que serve os mortos,
serviria, menos maternal-
mente, esses papeis. Tudo não
importa e creio bem que houve quem
visse a vida sem uma grande pacien-
cia para essa creança
acordada e com grande
desejo do socego ∧de quando
ella, enfim, se tenha
ido deitar.
esse episódio da imaginação
a que chamamos a realidade.
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Ha dois dias que chove e que cahe
do ceu cinzento e frio uma ∧outra chuva,
da côr que tem, que afflige a
alma. Ha dois dias... Estou
triste de sentir, e reflicto-o
á janella ao som da agua
que pinga e da chuva que
cahe. Tenho o coração
oppresso e as recor-
dações transformadas
em angustias.
Sem somno, nem
razão para
o ter, ha em mim uma grande vontade de
dormir.
Outrora, quando eu era
creança e feliz, vivia ∧numa
casa do pateo ao lado a voz
de um papagaio verde a cores.
Nunca, nos dias de chuva, se
lhe entristecia o dizer, e
clamava, sem duvida do
abrigo, um qualquer sentimento
constante, que pairava na
tristeza como um gramophone
anticipado.
Pensei neste papagaio porque
estou triste e a infancia longinqua
o lembra? Não, pensei
nelle realmente, porque do
predio fronteiro ∧de agora, uma voz de
papagaio grita arrevezada-
mente.
Tudo se me confunde. Quando
julgo que recordo, é outra
coisa que penso; se vejo, ignoro,
e quando me distraio,
nitida-
mente vejo.
Viro as costas á janella
cinzenta, de vidros frios ás mãos
que lhes tocam. E levo
comigo, por um sortilegio
de penumbra, de repente,
∧o interior da casa
antiga, fora da qual, no
pateo ao lado, o papa-
gaio gritava; e os meus
olhos adormecem-se-me de
toda a edade ∧irreparabilidade de ter effecti-
vamente vivido.