Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo


Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso; se vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.

Viro as costas á janella cinzenta, de vidros frios às mãos que lhes tocam. E levo comigo, por um sortilegio de penumbra, de repente, o interior da casa antiga, fora da qual, no pateo ao lado, o papagaio gritava; e os meus olhos adormecem-se-me de toda a irreparabilidade de ter effectivamente vivido.

Ha dois dias que chove e que cahe do ceu cinzento e frio uma certa chuva, na côr que tem que afflige a alma. Ha dois dias... Estou triste de sentir, e reflicto-o à janella ao som da agua que pinga e da chuva que cahe. Tenho o coração oppresso e as recordações transformadas em angustias.

Sem somno, nem razão para o ter, ha em mim uma grande vontade de dormir. Outrora, quando eu era creança e feliz, vivia numa casa do pateo ao lado a voz de um papagaio verde a cores.

Nunca, nos dias de chuva, se lhe entristecia o dizer, e clamava, sem duvida do abrigo, um qualquer sentimento constante, que pairava na tristeza como um gramaphone anticipado.

Pensei neste papagaio porque estou triste, e a infancia longinqua o lembra? Não, pensei nelle realmente, porque do pateo fronteiro de agora, uma voz de papagaio grita arrevezadamente.

(...) esse episodio da imaginação (a) que chamamos (a) realidade.


Título: Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 222
Página: 247
Nota: [2-89, ms.];