Para sentir a delicia e o terror


L. do D.

Para sentir a delicia e o terror da velocidade não preciso de automoveis velozes nem de combóios expressos. Basta-me um carro electrico e a espantosa faculdade de abstração que tenho e cultivo.

N'um carro electrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e instantânea de analyse, separar a idea de carro da idea de velocidade, separal-as de tudo, até serem cousas-reaes diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da mera-velocidade delle. E, cançado, se acaso quero o delirio da velocidade enorme [?], posso transportar a idea para o Puro imitar da velocidade e a meu bom prazer, augmental-a ou diminuil-a, alargal-a para além de todas as velocidades possiveis de vehiculos comboios.

Correr riscos reaes, além de me apavorar não é por medo que eu sinta excessivamente — perturba-me a perfeita attenção às minhas sensações, o que me incommoda e me despersonaliza.

Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.

Um poente é um phenomeno intellectual.


Título: Para sentir a delicia e o terror
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 131
Página: 140 - 141
Nota: [7-12, ms.];