Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 7-37)

Via lactea


        L. do D.
                              Via lactea

... com meneios de phrase de uma espiritualidade vene-
nosa...

... rituaes de purpura rôta, cerimoniaes mysteriosos de
ritos contemporaneos de ninguem, (de nenhuma comprehensão
delles).

... sequestradas sensações sentidas n'outro corpo que o
physico, mas corpo e physico a seu modo, intervallando
subtilezas entre complexo e simples...

... lagôas onde paira, pellucida, uma intuição de ouro
fôsco, tenuemente despida de se ter alguma vez realisa-
do, e sem duvida por colleantes requintes lyrio entre
mãos muito brancas...

... pactos entre o torpor e a angustia, verde-negros,
tepidos á vista, cançados entre sentinellas de tedio...

... nacar de inuteis consequencias, alabastro de frequen-
tes macerações — ouro, rôxo e orla(s) os entretenimentos
com occasos, mas não barcos para melhores margens, nem
pontes para crepusculos maiores...

... nem mesmo á beira da idéa de tanques, de muitos tan-
ques, longinquos atravez de choupos, ou cyprestes tal-
vez, segundo as syllabas de sentida com que a hora pro-
nunciava o seu nome...

... porisso janellas abertas sobre caes, continuo maru-
lhar contra docas, sequito confuso como opalas, louco
e absorto, entre o que amaranthos e terebinthos escrevem
a insomnias de entendimento nos muros obscuros de poder
ouvir...

... fios de prata rara, nexos de purpura desfiada, sob
tilias sentimentos inuteis, e por áleas onde buxos ca-
lam, pares antigos, leques subitos, gestos vagos, e
melhores jardins sem duvida esperam o cansaço placido
de não mais que aleas e alamedas...

... quincuncios, caramanchões, cavernas de artificio,
canteiros feitos, repuxos, toda a arte ficada de mestres
mortos, que haviam, entre duellos intimos de insatis-
feito com evidente, decidido procissões de cousas para
sonhos pelas ruas estreitas das aldeias antigas das sen-
sações...

... toadas a marmore em longes palacios, reminiscencias
pondo mãos sobre as nossas, olhares casuaes de indeci-
sões ocasos em ceus fatidicos, anoitecendo em estrellas
sobre silencios de imperios que decahem...


Reduzir a sensação a uma sciencia, fazer da ana-
lyse psychologica um methodo preciso como um instrumen-
to de micróscopo — pretensão que occupa, sêde calma, o
nexo de vontade da minha vida...

É entre a sensação e a consciencia d'ella que se
passam todas as grandes tragedias da minha vida. N'essa
região indeterminada, sombria, de florestas e sons d'a-
gua toda, neutral até ao ruido das nossas guerras, de-
corre aquelle meu sêr cuja visão em vão procuro...

Jazo a minha vida. (As minhas sensações são um
epitaphio, por demais extenso gongorico, sobre a minha vida morta.)
Aconteço-me a morte e occaso. O mais que posso esculpir
é sepulcro meu a belleza interior.

Os portões do meu afastamento abrangem para parques
de infinito, mas ninguem passa por elles, nem no meu
sonho — mas abertos sempre para o inutil e de ferro e-
ternamente para o falso...

Desfolho apotheoses nos jardins das pompas interio-
res e entre buxos de sonho piso, com uma sonoridade dura,
as áleas que conduzem a Confuso.

Acampei Imperios no Confuso, á beira de silencios,
na guerra fulva em que acabará o Exacto.

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O homem de sciencia reconhece que a unica realidade
para si é elle proprio, e o unico mundo real o mundo
como a sua sensação lh'o dá. Porisso, em logar de seguir
o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações ás
dos outros, fazendo sciencia objectiva, procura, antes,
conhecer perfeitamente o seu mundo, e a sua personalida-
de. Nada mais objectivo do que os seus sonhos. Nada mais
seu do que a sua consciencia de si. Sobre essas duas re-
alidades requinta elle a sua sciencia. É muito differente
já da sciencia dos antigos scientificos, que, longe de
buscarem as leis da sua propria personalidade e a organi-
sação dos seus sonhos, procuravam as leis do "exterior"
e a organisação d'aquillo a que chamavam "Natureza".