O Major


L. do D.

8/10/1919
O Major

Nada ha que tão intimamente revele, que tão completamente interprete a substancia do meu infortunio nato como o typo de devaneio que, na verdade mais acarinho, o balsamo que com mais intima frequencia escolho para a minha angustia de existir. O resumo da essencia do que desejo é só isto — dormir a vida. Quero de mais á vida, para que a possa desejar ida; quero de mais a não viver para ter sobre a vida um anseio demasiado importuno.

Assim, é este, que vou deixar escripto, o melhor dos meus sonhos preferidos. Á noite, ás vezes, com a casa quieta, porque os domnos sahissem ou se calem, fecho as vidraças da minha janella, tapo-as com as pesadas portas; immerso num fato velho, aconchego-me na cadeira profunda, e prendo-me no sonho de que sou um major reformado num hotel de provincia, á hora de depois de jantar, quando elle seja, com um ou outro mais sobrio, o conviva lento que demorou sem razão.

Supponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do major reformado, nem os postos militares por onde subiu até aquelle meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o major que me supponho não é posterior a nenhuma vida que tivesse, não tem, nem teve parentes; existe eternamente àquelle viver d'aquelle hotel provinciano, cansado já de conversas de anecdotas, que teve com os parceiros na demora.


Título: O Major
Heterónimo: Não atribuído
Número: 161
Página: 161 - 162
Data: 08-10-1919
Nota: [9-5r];