O Major


                                                  8/10/1919
L. do D.                    O Major

Nada ha que tão intimamente revele, que tão completamente in-
terprete a substancia do meu infortunio nato como o typo de devaneio
que, na verdade mais acarinho, o balsamo que com mais intima
frequencia escolho para a minha angustia de existir. O resumo
da essencia do que desejo é só isto — dormir a vida. Quero de
mais á vida, para que a possa desejar ida; quero de mais a
não viver para ter sobre a vida um anseio demasiado importuno.

Assim, é este, que vou deixar escripto, o melhor dos meus so-
nhos preferidos. Á noite, ás vezes, com a casa quieta, porque
os domnos sahissem ou se calem, fecho as vidraças da minha
janella, tapo-as com as pesadas portas; immerso num
fato velho, aconchego-me na cadeira profunda, e prendo-me no
sonho de que sou um major reformado num hotel de provincia, á hora
de depois de jantar, quando elle seja, com um ou outro mais
sobrio, o conviva lento que ficou demorou sem razão.

Supponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do
major reformado, nem os postos militares por onde subiu até
aquelle meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o
major que me supponho não é posterior a nenhuma vida que
tivesse, não tem, nem teve parentes; existe eternamente áquella meza
d'aquelle hotel provinciano, cansado já de conversas de anedoctas, que
teve com os parceiros na demora.


      /Sonitus/ desilientes aquae

No ar frio da noite calma
Boia á vontade a minh'alma
Quasi sem querer viver
Sente os momentos correr,
Como uma folha no rio,
Sente contra si o frio
Das heras fluidas levando
Seu inerte corpo brando.

Mais do que isto? Para quê?
Tudo quanto o olhar vê
A mão toca, o ouvido escuta,
A consciencia perscruta,
É inutil que se escutasse,
Que se visse sentisse e ou se pensasse.

Entre as margens com arbustos
Luzes na noite dos sustos,
Sob o luar repousado,
Ao correr vago e amparado
Do rio deixado e livre
A alma passa, a alma hora vive.

Ninguem. Só eu e o segredo
Do luar e do arvoredo
Que das margens causou medo.

          2
Nada. Só a hora inutil
Só o sacrificio futil
De desejar sem querer
E sem razão esquecer.

Prolixa memoria, toda
Rio indo como uma roda,
Noite como um lago mudo,
E a incerteza de tudo.

Recosto-me, e a lua dorme.
Cerca-me o que a noite enorme
Attribue á minha magua
Como um seu murmurio de agua.

Ninguem; a noite e o luar.
Nada; nem saber pensar.
Raie o dia, ou morra eu,
Volte no oriente do ceu
O sol ou não volte mais,
São sempre os tedios eguaes
E os barcos, calmos a medo,
Como o rio entre o arvoredo,
De nocturno cemiterio,
Ou fluido, vago misterio.

O mal é haver A dor é de haver consciencia.
Tristeza de ter consciencia!

                              8/10/1919


Identificação: bn-acpc-e-e3-9-1-52_0012_5_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-9-1-52_0013_5v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (22.2cm X 15.5cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 08-10-1919
Nota: LdoD, Texto escrito em recto e verso de uma folha pautada. No verso da folha existe um poema datado de 8-10-1919. Segundo Pizarro, este poema e outros "versos incompletos" não são necessariamente atribuíveis a Bernardo Soares. O poema "Sonitus disilientes aquae" está distribuído por duas colunas, a segunda encimada pelo n.º 2, e a primeira palavra do título está dubitada; cf. edição crítica dos "Poemas de Fernando Pessoa 1915-1920", organizada por João Dionísio.
Fac-símiles: BNP/E3, 9-5.1 , BNP/E3, 9-5.2