PERISTILO | Tu não existes, eu bem sei


Tu não existes, eu bem sei, mas sei eu ao certo se existo? Eu, que te existo em mim, terei mais vida real do que tu, do que a própria vida que te vive?

Chama tornada auréola, presença ausente, silêncio rítmico e fêmea, crepúsculo de vaga carne, taça esquecida para o festim, vitral pintado por um pintor-sonho numa Idade Média de outra Terra.

Cálice e hóstia de requinte casto, altar abandonado de santa ainda viva, corola de lírio sonhado do jardim onde nunca ninguém entrou...

És a única forma que não causa tédio, porque és sempre mudável com o nosso sentimento, porque, como beijas a nossa alegria, embalas a nossa dor, e ao nosso tédio, és-lhe o ópio que conforta e o sono que descansa, e a morte que cruza e junta as mãos.

Anjo ☐, de que matéria é feita a tua matéria alada? que vida te prende a que terra, a ti que és voo nunca erguido, ascensão estagnada, gesto de enlevo e de descanso?


Título: PERISTILO | Tu não existes, eu bem sei
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 507-c
Página: 477
Nota: [9-40, ms.];
Nota: Richard Zenith integra este texto no Grande Trecho 'PERISTILO' (Pessoa: 2012: 475-478).