Symphonia da noite inquieta
3
Symphonia da noite inquieta.
Os crepusculos nas cidades antigas, com tra-
dições desconhecidas escriptas nas pedras negras dos edifi-
cios pesados; as antemanhãs tremulas nas campinas alagadas,
pantanosas, humidas como o ar antes do sol;
as viellas, onde tudo é possivel, as arcas pesadas nas sa-
las vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta da-
tada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos;
o môfo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingar-
da que ninguem hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes
á janella; ninguem na estrada; o somno com sobresaltos; a
molestia que alastra pelas vinhas; sinos; a magua claustral
de viver... Hora de bençãos tuas mãos subtis... A caricia
nunca vem, a pedra do annel sangra no quasi-escuro... Festas
de egreja sem crença na alma: a belleza material dos santos
toscos e feios, paixões romanticas na idéa de tel-as, a mare-
sia, á noite entrada, nos caes da cidade humedecida pelo
arrefecer...
Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida sequestra.
Longos corredores, e as frestas, janellas fechadas sempre
abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar
como uma viagem por fazer ás terras incompletas... Nomes de
rainhas antigas... Vitraes onde pintaram condes fortes...
A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio
pelo ar da egreja concentrado no escuro do chão impenetravel...
As mãos seccas uma contra a outra.
Os escrupulos do monge que, no livro antiquissimo en-
contra, nos algarismos absurdos, ensinamentos dos magos, e
nas estampas decorativas os passos da Iniciação.
Praia ao sol a febre em mim... O mar luzin-
do a minha angustia na garganta... As velas ao longe e como
andam na minha febre... Na febre as escadas para a praia...
Calôr na briza fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare
tenebrosum — a noite escura lá longe para os argonautas e
a minha testa a arder as caravellas primitivas...
∧Tudo é dos outros, salvo a magua de o não ter.
∧Dá a agulha a mim... Hoje faltam no seio de casa os
seus passos pequenos e o não se saber onde ella está
mettida, com que estará a lavrar,
com pregas, com cores, com alfinetes... Hoje ∧as ∧suas costuras
∧estão fechadas para sempre em gavetas de corrêr
na commoda — superfluas — e não ha ∧o
calôr de braços sonhados á roda do
pescoço da mãe.