Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 138-63r)

Já me cansa a rua


Já me cansa a rua, mas não, não me
cansa — tudo é rua na vida. Ha a
taberna defronte, que vejo se olhar por cima do
hombro direito; e ha a caixotaria defronte, que vejo
se olhar por cima do hombro esquerdo, e, no meio,
que não verei se me não voltar de todo,
o sapateiro enche de som regular o portão
do escriptorio da Companhia Africana. Os outros andares são
indeterminados. No 3º
andar ha uma pensão, dizem que immoral,

mas isso é como toda a vida

Cansar-me a rua?
Canso-me só quando penso.
Quando olho a rua, ou a
sinto, não penso: trabalho
com um grande repouso
intimo, util naquelle
canto, escripturantemente
ninguem. Não tenho alma,
ninguem tem alma — tudo é
trabalho na carne. Longe,
onde os millionarios gosam,
sempre no estrangeiro d'elles,
tambem ha trabalho, e tambem
não ha alma. Fica
de tudo um ou outro
poeta. Quem me dera que de
mim ficasse uma phrase,

uma coisa dicta de que se dissesse,
Bem feito!, como os numeros que
vou inscrevendo, copiando-os,
no livro da minha vida inteira.

Nunca deixarei, creio, de ser
ajudante de guarda-livros de um armazem
de fazendas. Desejo, com uma sinceridade
que é feliz, não passar nunca a guarda-livros.