Amor - Usa Jerónimo Pizarro(331)

Prefiro a prosa ao verso


I

Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda porém, é de todos, e não é — creio bem — uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de tôda a valia da arte.

Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa. Como a música, o verso é limitado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos, coacções, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e contudo pensar. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fóra dêlles. Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.

Na prosa se engloba tôda a arte — em parte porque na palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra livre se contém tôda a possibilidade de o dizer e pensar. Na prosa damos tudo, por transposição: a côr e a forma, que a pintura não pode dar senão directamente, em elas mesmas, sem dimensão íntima; o rhythmo, que a música não pode dar senão directamente, nêle mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo corpo que é a idea; a estructura, que o arquiteto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, e nós erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o esculptor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstanciação; a poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado em uma ordem oculta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de um ritual.

Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não haveria outra arte que não a prosa. Deixariamos os poentes aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender verbalmente, assim os transmitindo em música inteligível de côr. Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo mobil e o seu morno suave. Fariamos casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, porcerto, qualquer coisa de infantil, de mnemónico, de auxiliar e inicial.

Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se reflectem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são bailados, em que a idea ideia se desnuda sinuosamente, numa sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa subtilezas convulsas em que um grande actor, o Verbo, transmuda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério impalpável do universo.