Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 9-40)

Tu não existes


2
                I
Tu não existes, eu bem sei, mas sei
eu ao certo se existo? Eu, que te
existo em mim, terei mais vida real
do que tu, do que a propria vida vida morta que te vive?

Chamma tornada auréola, diluida em parecer auréola, presença
ausente, silencio rhythmico e femea,
crepusculo de vaga carne, taça esque-
cida para o festim, vitral pintado
por um pintor-sonho n'uma edade media
de outra Terra.

Calice e hostia de requinte casto,
altar abandonado de santa ainda viva,
Corolla de lyrio sonhado do jardim onde
nunca ninguem entrou...

És a unica fórma que não causa raia
tedio, porque és sempre mudavel com o
nosso sentimento, porque, como beijas
a nossa alegria, embalas a nossa dôr,
e ao nosso tedio, és-lhe o opio que conforta
e o somno que descança, e a morte que
cruza e junta as mãos.

Anjo        , de que materia é feita
a tua materia alada? que vida te prende
a que terra, a ti que és vôo nunca erguido,
ascensão estagnada, gesto de enlevo e de descanso?


L. do Desassocego — Fim (ultimo trecho).
                II

Creêmos, ó Apenas-Minha, tu por existires e eu por te vêr existir, uma arte
outra do que toda a arte. (havida)

Do teu corpo de amphora inu-
til saiba eu tirar a alma de aureola esquecida de
novos versos e do ao teu rhythmo
lento de onda silenciosa, (de onda
ephemera, de onda sem origem) saibam os meus dêdos trémulos
ir buscar as linhas perfidas
de uma prosa virgem de ser a teres ter sido
ouvida ouvido.

O teu sorriso melodioso vago e indo-se seja para
mim symbolo e emblema visivel do soluço calado fado
do innumero mundo ao saber-se
erro e imperfeição incerteza.

As tuas mãos de tocadora d'harpa me fechem
as palpebras quando eu morrer de ter
dado a construir-te a minha vida.

E tu, que não és ninguem, serás
para sempre, ó Suprema, a arte
querida dos deuses que nunca fôram,
e a mãe virgem e esteril dos
deuses que nunca serão.