Leitura Crítica 1 - Usa (BNP/E3, 48C-29)

ASPECTOS | Prefacio geral


"ASPECTOS".
Prefacio geral.

1. Alberto Caeiro (1889-1915) — "O Guardador de Reba-
      nhos" e outros poemas e fragmentos.

2. Ricardo Reis: "Odes".

3. Antonio Mora: "Alberto Caeiro e a renovação do
      paganismo".

4. Alvaro de Campos: "Arco de Triumpho", Poemas.
5. Vicente Guedes: "Livro do Desasocego".
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A attitude, que deveis tomar para com estes
livros publicados, é a de quem não tivesse lido es-
ta explicação, e os houvesse lido, tendo-os comprado,
um a um, de cima das mesas de uma livraria. Outra
não deve ser a condição mental de quem lê. Quando
lêdes "Hamlet", não começaes por estabelecer bem no
vosso espirito que aquelle enredo nunca foi real.
Envenenarieis com isso o vosso proprio prazer, que
nessa leitura buscaes. Quem lê deixa de viver. Fazei
agora porque o façaes. Deixae de viver, e lêde. O que
é a vida?

Mas aqui, mais intensamente que no caso da
obra dramatica de um poeta, tendes que contar com o
relevo real do author supposto. Não vos assiste o
direito de acreditar na minha explicação. Deveis sup-
por, logo ella lida, que menti; que ides ler obras
de diversos poetas, ou de escriptores diversos, e
que atravez d'ellas podeis colher emoções, ou ensi-
namentos, d'elles, em que eu, salvo como publica-
dor, não estou nem collabóro. Quem vos diz que esta
attitude não seja, no fim, a mais justamente con-
forme com a ignorada realidade das cousas?

Na minha obra pessoal cousas haverá que mos-
trem similhança com o que ha nestas obras. Não vos
admireis. São legitimas influencias litterarias —
ou minhas nelles, ou d'elles em mim. Não ha simi-
lhança ou coexistencia de personalidades.

Cada personalidade d'essas — reparae — é per-
feitamente una comsigo propria, e, onde ha uma obra
disposta chronologicamente, como em Caeiro e Alvaro
de Campos, a evolução da pessoa moral e intellectual
do author é perfeitamente definida.

Vêde como isto se dá em Caeiro. Da limpidez
primitiva (que nunca, eu, logrei comprehender ou
sentir) da impressão nativa, a evolução é directa, a


dentro de "O G de R", para a aprofundação philoso-
phica. O pequeno episodio — expressivo de qualquer
realidade do author, que ignoro — de "O P Amoroso"
intervem e differencia. Depois, com a vinda da doen-
ça, a perfeita lucilação imaginativa ou sensivel
se apaga, e temos, nos poemas fragmentarios finaes
do livro, em certo ponto ainda a continuação do
aprofundamento, pela evolução do espirito do poeta,
em outros ponctos uma turbação da obra, pela doença
final, real como as minhas mãos, a que, com magua
minha que chorei em lagrimas, o grande poeta suc-
cumbiu.

Finjo? Não finjo. Se quizesse fingir, para que
escreveria isto? Estas cousas passaram-se, garanto;
onde se passaram não sei, mas foi tanto quanto neste
mundo qualquer cousa se passa, em casas reaes, cu-
jas janellas abrem sobre paisagens realmente visiveis.
Nunca lá estive — mas acaso sou eu quem escreve?

Na vossa vida practica, cheia de cousas impos-
siveis, e que nunca podiam ter acontecido; na vossa
vida de sentimento, domestica ou propria, cheia de
cousas de emoção que nunca se sentiram neste mundo,
ha acaso realidades tão presentes como estas, que
talvez julgaes indefinitivas? Ah, as sombras sois
vós e as vossas sensações. A realidade, sendo verda-
deira, é assim como m'a escreveram estes, e como
estes, que a escreveram, foram.

Não me digaes que sou medium de espiritos ex-
tranhos á terra. Com a terra me quero, e com o seu
ambito azul. O horizonte inclue quanto eu incluo; o
resto são os maus sonhos que cada um tem a sós com-
sigo.