Leitura Crítica 2 - Usa (BNP/E3, 114(2)-67r-68r-69r)

[Carta a João de Lebre e Lima, 3 de Maio de 1914]


                Rua Pascoal de Mello, 119, 3º, Dto.
                Lisboa, 3 de Maio de 1914.

Meu caro João:

Releve-me o ser tão pouco esthetico
o papel em que lhe escrevo. Mas é o
que tenho á mão e eu sinto absoluta
a necessidade de lhe escrever.

N'este dia de sol, claro e simples,
assaltou-me um tedio de tal maneira
profundo que não o posso exprimir se-
não expondo-lhe que sinto uma mão a
estrangular-me a alma.

Li hoje, pela não-sei-que- ésima vez,
parte do seu livro e fez-me bem, como
sempre me faz, por tão bem me fallar
do meu mal.

Excuso de empregar o vulgar "não i-
magina" para lhe descrever o abysmo de
torpor de todo o Eu em que estou cahido;
sei de sóbra que v. imagina isso muito bem,
para mal da sua felicidade.

Estou n'um d'estes momentos em que
tudo perde o sabôr a vida que tem e em
que adoece dentro de nós o nosso modo de
sentir as cousas; repare que eu digo que
adoece, não as sensações, mas o modo como ellas
são sensações.

Estou talvez fatigando-o com isto. Des-
culpe-me que o faça. Sou impellido a fa-
zel-o.


                                2.

A proposito de tedios, lembra-me per-
guntar-lhe uma cousa... Viu, n'um
numero, do anno passado, de A Aguia,
um trecho meu chamado Na floresta do
alheamento? Se não viu, diga-me. Man-
dar-lh'o-hei. Tenho immenso interesse
em que v. conheça esse trecho. É o
unico trecho meu publicado em que eu
faço do tedio, e do sonho esteril e can-
çado de si-proprio mesmo ao ir começar
a sonhar-se, um motivo e o assumpto.
Não sei se lhe agradará o estylo em que
o trecho está escripto: é um estylo
especialmente meu, e a que aqui varios
rapazes amigos, brincando, chamam "o
estylo alheio", por ser n'aquelle trecho
que apparece. E referem-se a "fallar
alheio", "escrever em alheio", etc.

Aquelle trecho pertence a um livro
meu, de que ha outros trechos escriptos mas
inéditos, mas de que falta ainda muito
para acabar; esse livro chama-se
Livro do Desassocego, por causa da
inquietação e incerteza que é a sua
nota predominante. No trecho publi-
cado isso nota-se. O que é em apparen-
cia um mero sonho, ou entresonho, narra-
do, é — sente-se logo que se lê, e deve, se
realizei bem, sentir-se atravez de toda a
leitura — uma confissão sonhada da inu-
tilidade e dolorosa furia esteril de
sonhar.


                                3.

Tenho-lhe fallado de mim demasiada-
mente. Queria ter agora, n'este momento,
ao mesmo tempo em que as estou desejan-
do, extensas novas suas. O que tem v.
feito? Tem escripto? E tem escripto
versos?

Espero para breve noticias suas. Se
me pudesse escrever, não um postal, mas
uma carta...!

Como vê pelo en-tête d'esta carta,
mudei de residência. Mudei ha trez
dias apenas. É para aqui que me
deve escrever agora.

Adeus. Um grande e fraterno a-
braço do
            muito e sempre seu

            Fernando Pessôa

                    14 de Maio.
Escripta a 3 de Maio, esta carta
vae para o correio a 14. Como v.
vê continúa aquella minha [...]
de atrazar mesmo aquillo que parece
impossivel que se atraze.

Emfim...
                FP