LdoD da Chuva - Usa (BNP/E3, 1-38-39r-40r)

(Chuva) E por fim, por sobre a escuridão dos telhados


L; do D.        (Chuva)

E por fim, — vejo-o por memoria — por sobre a escuridão dos telhados
lustrosos, a luz fria da manhã tepida raia como
um supplicio do Apocalypse. É outra vez a noite
immensa da claridade que augmenta. É outra vez o
horror de sempre — o dia, a vida, a utilidade fic-
ticia, a actividade sem remedio. É outra vez a mi-
nha personalidade physica, visivel, social, trans-
missivel por palavras que não dizem nada, usavel
pelos gestos dos outros e pela consciencia alheia.
Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o principio
da luz de trevas que enche de duvidas cinzentas as
frinchas das portas das janellas — tam longe de her-
meticas, meu Deus! —, vou sentindo que não poderei
guardar mais o meu refugio de estar deitado, de
não estar dormindo mas de o poder estar, de ir so-
nhando, sem saber que ha verdade nem realidade, en-
tre um calor fresco de roupas limpas e um desconheci-
mento, salvo de conforto, da existencia do meu cor-
po. Vou sentindo fugir-me a inconsciencia feliz
com que estou gosando da minha consciencia, o modor-
rar de animal com que espreito, entre palpebras
de gato ao sol, os movimentos da logica da minha
imaginação desprendida. Vou sentindo sumirem-se-me
os privilegios da penumbra, e os rios lentos sob
as arvores das pestanas entrevistas, e o sussurro
das cascatas perdidas entre o som do sangue lento surdo
nos ouvidos e o vago perdurar da chuva. Vou-me per-
dendo até vivo.

Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo.
Não sonho o intervallo certo, mas reparo, como se
começasse a dispertar de um somno não dor-
mido os primeiros ruidos da vida da cidade, a subir,
como uma cheia palavreado, do logar poço vago, lá em baixo, onde
ficam as ruas que Deus fez. São sons alegres, coa-
dos pela tristeza da chuva que ha, ou, talvez, que
houve — pois a não oiço agora... — só o cinzento
excessivo da luz frinchada até mais longe que me dá, nas
sombras de uma claridade frouxa, insufficiente a insufficiencia para a
altura da madrugada, que não sei qual é —. São sons
alegres e dispersos e doem-me no coração na consciencia como se


me viessem, com elles, chamar a um exame ou a uma
execução. Cada dia, se o oiço raiar da cama onde
ignoro, me parece o dia de um grande acontecimento meu
que não terei coragem para enfrentar. Cada dia, se
o sinto erguer-se do leito das sombras, com um cahir
de roupas da cama pelas ruas e as viellas, vem chamar-me
a um tribunal. Vou ser julgado em cada hoje que ha.

E o condemnado perene
que ha em mim agarra-se
ao leito como á mãe que
perdeu, e acaricia o
travesseiro como se
a ama o defendesse
dos garotos.

A sesta feliz do bicho
grande á sombra de
arvores, o cansaço fresco
do esfarrapado entre a herva
alta, o torpor do
negro na tarde morna e longinqua,
a delicia do bocejo que pesa nos olhos frouxos,
tudo que acaricia o
esquecimento, fazendo somno,
encostando, pé ante pé, as portas da janella na alma,
o socego
do repouso
na cabeça,
o affago anonymo de dormir.

Dormir, ser longinquo sem o saber, estar distante,
esquecer com o proprio corpo;
ter a liberdade de ser in-
consciente, um refugio
de lago esquecido, estagnado
entre frondes arvores, nos
vastos afastamentos das florestas.

Um nada com respiração
por fóra, uma morte leve,
de que se disperta com saudade
e frescura, um ceder dos tecidos
da alma á roupagem do esquecimento.


Ah, e de novo, como o protesto reatado
de quem se não convenceu, oiço o alarido brusco
da chuva chapinhar no universo aclarado. Sinto
um frio até aos ossos suppostos, como se tivesse
medo. E agachado, nullo, humano a sós commigo na
pouca treva que ainda me resta, choro, Sim, choro,
choro de solidão e de vida, e a minha magua futil
como um carro sem rodas jaz á beira da reali-
dade entre os estercos do abandono. Choro
de tudo, entre perda do regaço, a morte da
mão que me davam, os braços que
não soube como me cingissem, o hombro que nunca
poderia ter... E o dia que raia definitivamente,
a magua que raia em mim como a verdade crua do dia,
o que sonhei, o que pensei, o que se esqueceu em
mim — tudo isso, num amalgama de sombras, de fic-
ções e de remorsos, se mixtura no rastro em que
vão os mundos e cahe entre as coisas da vida como
o esqueleto de um cacho de uvas, comido á esquina
pelos garotos que o roubaram.

O ruido do dia humano augmenta de repente,
como um som de sineta de chamada. Estala a dentro de
casa o fecho suave da primeira porta que se abre para viverem. Oiço
chinellos num corredor absurdo que conduz até meu
coração. E num gesto brusco, como quem enfim se matasse
, arrojo de sobre o corpo duro as roupas pro-
fundas da cama que me abriga. Dispertei. O som da
chuva esbate-se para mais alto no exterior indefinido. Sinto-me
mais feliz. Cumpri uma coisa que ignoro.
Ergo-me, vou á janella, abro as portas com uma de-
cisão de muita coragem. Luze um dia de chuva clara que
me afoga os olhos em luz baça
Abro as proprias janellas de vidro. O ar fresco humedece-me a pelle quente.
Chove, sim, mas, ainda que seja o mesmo é afi-
nal tam menos! Quero refrescar-me, viver, e inclino o pes-
coço á vida, como a uma canga immensa.
á canga abstracta de Deus
estendo-o á janella como numa guilhotina
estendo-o pela janella fóra