Uma das grandes tragedias da minha vida


L. do D.

Uma das grandes tragedias da minha vida — porem d'a-
quellas tragedias que se passam na sombra e no subterfugio —
é a de não poder sentir qualquer coisa naturalmente. Sou
capaz de amar e odiar, como todos, de, como todos, recear
e enthusiasmar-me; mas nem meu amor, nem meu odio, nem meu
receio, nem meu enthusiasmo, são exactamente aquellas mes-
mas coisas que são. Ou lhes falta qualquer elemento, ou
se lhes accrescenta algum. O certo é que são qualquer ou-
tra coisa, e o que sinto não está certo com a vida.

Nos espiritos a que chamam calculistas — e a palavra
é muito bem delineada —, os sentimentos soffrem a delimi-
tação do calculo, do escrupulo egoista, e parecem outros.
Nos espiritos a que chamam propriamente escrupulosos, a
mesma deslocação dos instinctos naturaes se nota. Em mim
nota-se egual perturbação da certeza do sentimento, mas
nem sou calculista, nem sou escrupuloso. Não tenho des-
culpa para sentir mal. Por instincto desnaturo os instinc-
tos. Sem querer, quero erradamente.


Identificação: bn-acpc-e-e3-1-1-89_0095_47_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.4cm X 21.1cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (black-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta preta.
Data: 1930 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira.
Fac-símiles: BNP/E3, 1-47r.1