Uma das grandes tragedias da minha vida


L. do D.

Uma das grandes tragedias da minha vida — porém d'aquellas tragedias que se passam na sombra e no subterfugio — é a de não poder sentir qualquer coisa naturalmente. Sou capaz de amar e odiar, como todos, de, como todos, recear e enthusiasmar-me; mas nem meu amor, nem meu odio, nem meu receio, nem meu enthusiasmo, são exactamente aquellas mesmas coisas que são. Ou lhes falta qualquer elemento, ou se lhes accrescenta algum. O certo é que são qualquer outra coisa, e o que sinto não está certo com a vida.

Nos espiritos a que chamam calculistas — e a palavra é muito bem delineada —, os sentimentos soffrem a delimitação do calculo, do escrupulo egoista, e parecem outros. Nos espiritos a que chamam propriamente escrupulosos, a mesma deslocação dos instinctos naturaes se nota. Em mim nota-se egual perturbação da certeza do sentimento, mas nem sou calculista, nem sou escrupuloso. Não tenho desculpa para sentir mal. Por instincto desnaturo os instinctos. Sem querer, quero erradamente.


Título: Uma das grandes tragedias da minha vida
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 299
Página: 29 - 30
Nota: [1-47, dact.];