Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(61)

A tragedia principal da minha vida


L. do D.

A tragedia principal da minha vida é,
como todas as tragedias, uma ironia do Desti-
no. Repugno a vida real como uma condemnação;
repugno o sonho como uma libertação ignobil.
Mas vivo o mais sordido e o mais quotidiano
da vida real; e vivo o mais intenso e o
mais constante do sonho. Sou como um escravo
que se embebeda á sesta — duas miserias em
um corpo só.

Sim, vejo nitidamente, com a clareza com
[que] os relampagos da razão destacam do negrume
da vida os objectos proximos que nol-a formam,
o que ha de vil, de lasso, de deixado e facti-
cio, nesta Rua dos Douradores que me é a vi-
da inteira — este escriptorio sordido até á
sua medulla de gente, este
quarto mensalmente alugado onde
nada acontece senão viver um morto, esta mer-
cearia da esquina cujo dono conheço como gente
conhece gente, estes moços da porta da taber-
na antiga, esta inutilidade trabalhosa de to-
dos os dias eguaes, esta repetição pegada
das mesmas personagens, como um drama que con-
siste apenas no scenario, e o scenario estives-
se ás avessas...

Mas vejo também que fugir a isto seria
ou dominal-o ou repudial-o, e eu nem o domino,
porque o não excedo a dentro do real, nem o
repudio porque, sonhe o que sonhe, fico sem-
pre onde estou.

E o sonho, a vergonha de fugir para mim,
a cobardia de ter como vida aquelle lixo da
alma que os outros teem só no somno, na figura
da morte com que resonam, na calma com que
parecem vegetaes progredidos!


Não poder ter um gesto nobre que não seja de
portas a dentro, nem um desejo inutil que não seja
deveras inutil!

Definiu Cesar toda a figura da ambição quando
disse aquellas palavras: "Antes o primeiro na aldeia
do que o segundo em Roma!" Eu não sou nada nem na aldeia
nem em Roma nenhuma. Ao menos, o mercieiro da esqui-
na é respeitado da Rua da Assumpção
até á Rua da Victoria; é o Cesar de um quarteirão.
Eu superior a elle? Em quê, se o nada não comporta
superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

    É Cesar de todo um quarteirão e as mulheres
    gostam d'elle condignamente.

E assim arrasto, a fazer o que não quero, e a sonhar o
que não posso ter, a minha vida,
                , absurda como
um relogio publico parado.


Aquella sensibilidade tenue,
mas firme, o sonho longo
mas consciente


que forma no seu conjunto
o meu privilegio de penumbra.