Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-3)

Reparando ás vezes no trabalho


L. do D.

Reparando ás vezes no trabalho litterario abundante,
ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas, de
tantas creaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em
mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um mix-
to incoherente de sentimentos mixtos.

Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou
seja má — e, se nunca é inteiramente boa; muitas vezes não
é inteiramente má — sim, fazer uma coisa completa causa-me,
talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É
como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas
é nossa como os filhos são.

E eu, cujo espirito de critica propria me não permitte
senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso
escrever mais que trechos, bocados, excerptos do inexisten-
te, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito tambem.
Mais valera pois, ou a obra completa, ainda que má, que em
todo o caso é obra; ou a ausencia de palavras, o silencio
inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.



Penso se tudo na vida não será a degeneração
de tudo (qualquer coisa). O ser não será uma
approximação — uma vespera, ou uns arredores...

Assim como o Christianismo não foi senão a degenera-
ção bastarda prophetica do neoplatonismo abaixado,
a judaização romanização do hellenismo hellenico pelo romano judeu judaismo,
assim nossa epocha, terrível e amarga,
é o desvio multiplo de todos os grandes
propositos, confluentes ou oppostos, de
cuja fallencia surgiu a era com que em
falliram, a somma de negações em com
que nos affirmamos.

Vivemos um entreacto com orchestra. uma bibliophilia de analphabeto,

Mas que tenho eu, neste quarto andar, com todas estas
sociologias civilizações? Tudo isto é-me sonho, como as princezas
da Babylonia, e o ocuparmo-nos da humanidade é futil,
futil — uma archeologia do presente.


Sumir-me-hei entre a nevoa,
como um extrangeiro a tudo,
ilha humana desprendida do
sonho do mar, navio com ser
superfluo á tona de tudo.