Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-9r-10r)

A personagem individual e imponente


L. do D.

A personagem individual e imponente, que os ro-
manticos figuravam em si mesmos, varias vezes, em sonho, a
tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me
encontrei a rir alto, da minha idéa de vivel-a. O homem fa-
tal, afinal, existe nos sonhos proprios de todos os homens vulgares,
e o romantismo não é senão o virar do avesso do dominio quotidiano de
nós mesmos. Quasi todos os homens sonham, nos secretos do
seu ser, um grande imperialismo proprio seu, a sujeição de to-
dos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração
dos povos, e, nos mais nobres pobres, de todas [as] eras... Poucos são como
eu habituados ao sonho, são porisso lucidos bastante para rir da pos-
sibilidade esthetica de se sonhar assim.

A maior accusação ao romantismo não se fez ainda:
é a de que elle representa a verdade interior da natureza
humana. Os seus exaggeros, os seus ridiculos, os seus pode-
res varios de commover e de seduzir, residem em que elle é
a figuração exterior do que ha mais dentro na alma, mas con-
creto, visualizado, até possivel, se o ser possivel de-
pendesse de outra coisa que não o Destino.

Quantas vezes eu mesmo, que rio de taes seducções
da distracção, me encontro suppondo que seria bom calmo ser (cele-
bre)rico, que seria agradavel ser ameigado, que seria colorido
ser triumphal! Mas não consigo visionar-me nesses papeis
de pincaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho
sempre proximo (como uma rua da Baixa). Vejo-me celebre? Mas vejo-me celebre como
guarda-livros. Sinto-me alçado aos thronos do ser conhecido?
Mas o caso passa-se no escriptorio da Rua dos Douradores e os rapazes são como obstaculos. Ouço-me applaudido por multidões variegadas?
O applauso chega ao quarto andar onde moro e collide com a
mobilia tosca do meu quarto barato, com o reles que me rodeia, e
me amesquinha desde a cosinha ao sonho. Não tive sequer castellos em
Hespanha, como os grandes hespanhoes de todas as illusões.
Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um ba-
ralho incompleto com que se não poderia jogar nunca mais; nem
chairam, foi preciso destruil-os, com um gesto de mão, sob
o impulso impaciente da creada velha, que queria recompor
sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de lá,
porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino.
Mas até isto é uma visão improficua, pois não tenho a casa
de provincia, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no
fim de uma noite de familia, um chá que me saiba a repouso.
O meu sonho falhou até nas metaphoras e nas figurações.
O meu imperio nem chegou ás cartas velhas de jogar. A minha
victoria sem um bule sequer, nem um gato antiquissi-
monem chegou a um bule nem ao gato eterno das noites. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos
arredores, apreçado pelo peso entre os postscriptos do per-
dido.


L. do D.    (continuação)

Leve eu ao menos, para o immenso possivel do
abysmo de tudo, a gloria da minha desillusão como se
fosse a de um grande sonho, o esplendor de não crer como um
pendão de derrota — pendão comtudo nas mãos debeis,
mas pendão arrastrado entre a lama e o sangue dos fra-
cos... mas erguido ao alto, ao
sumirmo-nos nas areias
movediças,
ninguem sabe se como
protesto, se como desafio,
se como gesto de desespero...
Ninguem sabe, porque
ninguem sabe nada, e
as areias engolfam
os que teem pendões como
os que não teem... E as areias cobrem tudo,
a minha vida, a minha prosa,
a minha eternidade.

Levo commigo
a consciencia da derrota
como um pendão
de victoria.