Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(42)

A personagem individual e imponente


L. do D.

A personagem individual e imponente, que os romanticos figuravam em si mesmos, varias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha idéa de vivel-a. O homem fatal, afinal, existe nos sonhos proprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do dominio quotidiano de nós mesmos. Quasi todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo proprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras... Poucos (são) como eu habituados ao sonho, são por isso lucidos bastante para rir da possibilidade esthetica de se sonhar assim.

A maior accusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que elle representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exaggeros, os seus ridiculos, os seus poderes varios de commover e de seduzir, residem em que elle é a figuração exterior do que ha mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possivel, se o ser possivel dependesse de outra coisa que não o Destino.

Quantas vezes eu mesmo, que rio de taes seducções da distracção, me encontro suppondo que seria bom ser celebre, que seria agradavel ser ameigado, que seria colorido ser triumphal! Mas não consigo visionar-me nesses papeis de pincaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre proximo como uma rua da Baixa. Vejo-me celebre? Mas vejo-me celebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos thronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escriptorio da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstaculo. Ouço-me applaudido por multidões variegadas? O applauso chega ao quarto andar onde moro e collide com a mobilia tosca do meu quarto barato, com o que me rodeia, e me amesquinha desde a cosinha [...] ao sonho. Não tive sequer reles castellos em Hespanha, como os grandes hespanhoes de todas as illusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca; nem chairam, foi preciso destruil-os, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente da creada velha, que queria recompor sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improficua, pois não tenho a casa de provincia, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de familia, um chá que me saiba a repouso. O meu sonho falhou até nas metaphoras e nas figurações. O meu imperio nem chegou ás cartas velhas de jogar. A minha victoria falhou sem um bule sequer nem um gato antiquissimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores, apreçado pelo peso entre os postscriptos do perdido.