Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-15r)

Os classificadores de coisas


L. do D.

Os classificadores de coisas, que são a-
quelles homens de sciencia cuja sciencia é só clas-
sificar, ignoram, em geral, que o classificavel é
infinito e portanto se não póde classificar. Mas o
em que vae meu pasmo é que ignorem a existencia de
classificaveis incognitos, coisas da alma e da con-
sciencia que estão nos intersticios do conhecimento.

Talvez porque eu pense demais ou sonhe
demais, o certo é que não distingo entre a realida-
de que existe e o sonho, que é a realidade que não
existe. E assim intercalo nas minhas meditações do
céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se
pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação.

Douro-me de poentes suppostos, mas o
supposto é vivo na supposição. Alegro-me de brisas
imaginarias, mas o imaginario vive quando se imagina.
Tenho alma por hypotheses varias, mas essas hypothe-
ses teem alma propria, e me dão portanto a que teem.

Não ha problema senão o da realidade, e
esse é insoluvel e vivo. Que sei eu da differença
entre uma arvore e um sonho? Posso tocar na arvore;
sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?

Que é isto? Sou eu que, sòsinho no
escriptorio deserto, posso viver imaginando sem des-
vantagem da intelligencia. Não soffro interrupção de
pensar das carteiras abandonadas e da secção de re-
messas só com papel e cordeis em rolos. Estou, não
no meu banco alto, mas recostado, por uma promoção
por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira.
Talvez seja a influencia do logar que me unge de
distrahido. Os dias de grande calor fazem somno;
durmo sem dormir por falta de energia. E por isso
penso assim.
                                  25/7/1932.