Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(88)

Não sei porquê — noto-o subitamente


L. do D.

Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sòsinho
no escriptorio. Já, indefinidamente, o presentira. Havia em
qualquer aspecto da minha consciencia de mim uma
amplitude de allivio, um respirar mais fundo de pulmões di-
versos. (differentes).

É esta uma das mais curiosas sensações que nos póde
ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de es-
tarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia de outrem.
Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domi-
nio facil e largo, de amplitude — como disse — de allivio e
socego.

Que bom estar só largamente! Poder fal-
lar alto comnosco, passear sem estorvo de vistas, repousar
para traz num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna
um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.

Os ruidos são todos alheios, como se pertencessem
a um universo proximo mas independente. Somos, finalmente,
reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de
nós — quem sabe — com maior vigor que os de mais ouro falso.
Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos,
regulares do soldo dado, sem necessidades nem preoccupações.

Ah, mas reconheço, naquelle passo na escada, subindo
até mim não sei quem, o alguem que vae interromper a minha
solidão espairecida. Vae ser invadido pelos barbaros o meu
imperio implicito. Não é que o passo me diga quem é que vem,
nem que me lembre o passo d'este ou d'aquelle que eu
conheça. Ha um mais surdo instincto na alma que me faz saber
que é para aqui que vem o que sobe, por emquanto só passos,
na escada que subitamente vejo, porque penso nelle que a so-
be. Sim, é um dos empregados. Para, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sòsinho,
sr. Soares?" E eu respondo: "Sim, já ha tempo..." E elle en-
tão diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o
velho, no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, sr.
Soares, e de mais a mais..." "Grande maçada, não ha duvida",
respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz elle, já de
casaco roto, e encaminhando-se para a secretaria. "E dá",
confirmo, sorridente. Depois, extendendo a mão para a cane-
ta esquecida, reentro, graphico, na saude anonyma da vida normal.

                                        29/3/1933.