Amor - Usa Jerónimo Pizarro(420)

Não sei porquê


L. do D.

Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sòsinho no escriptorio. Já indefinidamente, o presentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciencia de mim uma amplitude de allivio, um respirar mais fundo de pulmões differentes.

É esta uma das mais curiosas sensações que nos póde ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou de outrem. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de dominio facil e largo, de amplitude — como disse — de allivio e socego.

Que bom estar só largamente! Poder fallar alto comnosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para traz num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.

Os ruidos são todos alheios, como se pertencessem a um universo proximo mas independente. Somos, finalmente, reis. / A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós — quem sabe — com maior vigor que os de mais ouro falso. / Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preoccupações.

Ah, mas reconheço, naquelle passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguem que vae interromper a minha solidão espairecida. Vae ser invadido pelos barbaros o meu imperio implicito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo d'este ou d'aquelle que eu conheça. Ha um mais surdo instincto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por emquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nelle que a sobe. Sim, é um dos empregados. Para, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sòsinho, sr. Soares?" E eu respondo: "Sim, já ha tempo..." E elle então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais..." "Grande maçada, não ha duvida", respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz elle, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretaria. "E dá", confirmo, sorridente. Depois, extendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, graphico, na saude anonyma da vida normal.

29/3/1933.