Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(312)

Os sentimentos que mais doem


L. do D.

3-9-1931.

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos — a ansia de coisas impossiveis, precisamente porque são impossiveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a magua de não ser outro, a insatisfação da existencia do mundo. Todos estes meios tons da consciencia da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas.

Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do desconsolo, se são reminiscencias de qualquer outro mundo em que houvessemos estado — reminiscencias cruzadas e misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos mas não na origem se a soubessemos. Não sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que d'elles somos, de uma maneira incompleta — perdida a solidez e nós figurando-nol-a mal nas só duas dimensões da sombra que vivemos.

Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que correspondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa que substitua aquella a que se abraçam em visão — tudo isto pesa como uma condemnação dada não se sabe onde, ou por quem, ou porquê.

Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço anticipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anonymo de todos os sentimentos. Nestas horas de magua subtil, torna-se-nos impossivel, até em sonho, ser amante, ser heroe, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na idéa do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incomprehensivel, meros sons de syllabas sem fórma no entendimento. A vida é ôca, a alma é ôca, o mundo é ôco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vacuo. É tudo um chaos de coisas nenhumas.

Se penso isto e ólho, para ver se a realidade me mata a sêde, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, idéas — está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos elles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o extranhe mas por que não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma — como unica realidade d'este momento — ha uma magua intensa e invisivel, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.